Liberdade religiosa: pela igualdade ou pelo privilégio?

As relações entre o Estado e a Igreja Católica continuam a reger-se tendo como matriz a Concordata de 1940 (ainda que alterada em 1975 no aspecto pontual mas altamente relevante do levantamento da proibição do divórcio civil de casamentos celebrados sob forma canónica), aprovada num tempo profundamente marcado pelo carácter "antidemocrata" e "antiliberal" do regime que a celebrou para citar palavras insuspeitas do Deputado Sá Carneiro, nos longínquos tempos de 1971, preconizando, já então, a revisão concordatária devido às suas muitas disposições "obsoletas". Foi, aliás, sob o carácter autoritário do "Estado Novo" que a Constituição de 1933 voltou a estabelecer oficialmente a religião católica como "religião tradicional da Nação Portuguesa" e o privilégio histórico das relações concordatárias com a Santa Sé. Em tal contexto, em 1971, uma lei de bases relativas à liberdade religiosa insistiria em consagrar o regime concordatário como o regime especial das relações entre o Estado e a IC. Em nítido contraste democrático, a Constituição de 1976 apresenta-se tributária do princípio da laicidade, integra no núcleo dos direitos liberdades e garantias a liberdade de consciência, de religião e de culto e vincula o Estado a um dever de neutralidade em domínios tão relevantes como os da educação e cultura, assegurando que o ensino público não será confessional. É neste quadro que pareceu revelar actualidade a apresentação de uma iniciativa de lei denominada da liberdade religiosa. Como o título inculca, deveria tratar-se de um diploma apto a regular tal regime jurídico de forma actualizada. Tanto mais que os autores da iniciativa logo afirmavam, na sua justificação de motivos, que os (anteriormente citados) textos legislativos concebidos no quadro constitucional de um regime de governo antidemocrático, articulam um entendimento da liberdade religiosa e da separação entre o Estado e as religiões inconciliável quer com a Constituição quer com a doutrina católica firmada no Concílio Vaticano II, as quais são entre si coincidentes na matéria. Como quer que seja, o processo escolhido foi radicalmente diverso do prosseguido por outros Estados de tradição concordatária Itália, Espanha que, em conformidade com as suas Constituições democráticas, encetaram a revisão do regime jurídico da liberdade religiosa precisamente pela revisão das respectivas Convenções e Acordos com a Santa Sé. Compreende-se o desígnio de Italianos e Espanhóis: evitar tanto o melindre de uma revisão eventualmente sobressaltada das regras de relacionamento entre os respectivos Estados e a Igreja como impedir qualquer capitus deminutio da soberania democrática, se colocada na situação de legiferar com limitações derivadas de relações especiais de poder. Ora, é precisamente neste ponto que começam os problemas. No ponto exacto em que, com meridiana clareza, ouvimos na voz autorizada do Sr. Cardeal Patriarca que o Parlamento não é sede própria para definir modos de regulação das relações entre o Estado e a IC. O que, evidentemente, equivale a considerar que lei geral da República não é instrumento idóneo para estabelecer normativos aplicáveis à Igreja. Impõe-se, por isso, perguntar: que fundamento democrático pode justificar que um órgão soberano se destitua do dever de legislar de forma geral e abstracta em domínios que ou têm natureza de direitos, liberdades e garantias ou de normas comuns destinadas a colocar o Estado numa situação, mesmo quando de cooperação, de neutralidade e de não ingerência em relação às confissões religiosas e às suas práticas de missionação e de culto? A verdade é que se a Assembleia da República legislar de forma parcial, não regulará o exercício da liberdade religiosa apenas para confissões minoritárias. Restabelecerá na prática o privilégio histórico de a IC predeterminar o quê e ditar o quando e o como das formas de regulação pública que se lhe referirem. Tudo, afinal, se voltará a passar como se nas relações institucionais entre o Estado e a IC continuassem a vigorar as regras da Constituição de 33. Mau grado a Constituição democrática e o Vaticano II! Será, aliás, elucidativa uma identificação sumária de algumas das matérias mais simbólicas que a IC contesta que o legislador venha a estabelecer com aplicação geral: - As disposições que regulam a assistência religiosa em situações especiais de constrangimento à mobilidade das pessoas, quadro em que o Estado assume uma dever de cooperação com vista a assegurar condições adequadas ao exercício da assistência religiosa, salvaguardando a lei que tal assistência deve processar-se com respeito pelo princípio da separação, visando evitar-se confusões desnecessárias entre a natureza das capelanias e as funções públicas; - Os direitos reconhecidos aos ministros do culto perante as autoridades públicas, designadamente o seu estatuto de imunidades externas bem como o regime básico dos direitos sociais que o Estado lhes confere; - A regulação do ensino religioso nas escolas públicas, assumindo o Estado o dever de respeitar os programas indicados pelas confissões religiosas bem como a indicação de confiança relativamente aos respectivos professores, a quem paga e assegura nos seus direitos, estabelecendo-se - em atenção à liberdade de consciência - que a educação moral e religiosa tem natureza opcional e não é alternativa relativamente a disciplinas curriculares e em atenção, no limite, ao princípio constitucional da não confessionalidade do ensino a regra de que os professores encarregados do ensino confessional não devem cumular outra leccionação aos mesmos alunos (sem prejuízo da faculdade de ministrarem, fora da acumulação, outras disciplinas para que estejam habilitados), ressalvadas no entanto, ainda aí, as situações de impossibilidade de diversificação; - O regime dos tempos de emissão religiosa nos serviços públicos de televisão e de rádio que prescreve a compatibilidade entre o princípio da representatividade e o princípio da tolerância. Em síntese, tendo em conta que, a par da definição de normas gerais, nenhuma dificuldade foi levantada, por parte do legislador, à salvaguarda dos regimes especiais com abrigo concordatário, em face das reticências da IC permanece incontornável a questão principal. O Parlamento do regime democrático bem poderia ter sido poupado, com prudência e sentido de Estado, ao lamentável risco de claudicar das suas próprias competências a benefício do primado da influência dos poderes ideológicos em face da autonomia do poder político. Primeiro, se os governantes, como outros mais avisados, tivessem procedido à revisão do regime concordatário, conduzindo a que uma harmoniosa lei geral da liberdade religiosa, como corolário, viesse a reflectir igualdade e não dualidade de tratamentos. Segundo, se, no processo preferido, salvaguardado escrupulosamente o ainda que obsoleto regime concordatário, a lei em todo o caso estabelecesse âmbito de aplicação geral às disposições reguladoras do exercício da liberdade religiosa que, tendo natureza universal, nada justifica que sejam aplicadas com discriminação. Ao afirmar o que venho afirmando, e em conclusão, permito-me pedir outra vez de empréstimo as palavras de Sá Carneiro no contexto já citado: faço-o com a serenidade decorrente da consciência de ter cumprido um dever no caso, o dever de um legislador que se esforça por salvaguardar o princípio da igualdade e da não discriminação como o mais elementar dos princípios da justiça - ao abordar um assunto incómodo (...) certo de que, muito mais do que as opiniões de outrem a nosso respeito, importa o valor e o bom fundamento das nossas próprias opiniões. Importa, também, poder exprimir o inconformismo de quem acha que, na vida política, pessoas de acção e com o sentido da eficácia dos seus actos são precisas todos os dias. Mas que políticos de pensamento e acção, empenhados em dar testemunho coerente, sobretudo nas situações difíceis, dos valores democráticos do regime, são precisos muito mais.

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