A bofetada

As causas da depressão nacional e da perda de auto-estima dos portugueses nem sequer são muito difíceis de interpretar. Aos anteriores motivos conhecidos somam-se agora outros: em particular, a injustiça praticada pela justiça e pelo poder político no caso das FP-25 de Abril. O ar impante de Otelo e dos seus companheiros, os abraços esfuziantes à saída do tribunal, são uma bofetada para a esmagadora maioria dos portugueses. Como não é líquido que essa maioria seja adepta de dar cristãmente a outra face, introduz-se no tecido psicológico colectivo mais violência escondida. Pelas vias muito ínvias em que este rio do ressentimento corre, ele há-de vir ao de cima, de forma certamente errada e injusta, mas virá. Virá num cidadão desesperado, num acto de loucura, numa vaia ou escaramuça qualquer, que terá lá no fundo, nas dobras de qualquer inconsciência, o julgamento perverso que alguém faz do sorriso de Otelo, da "aisance" criminosa dos que não se arrependeram, mas que fazem hoje a sua vidinha de antigos combatentes, como se nada fosse. E será assim porque o terrorismo dos FP-25 foi exactamente isto mesmo: terrorismo, terrorismo cujo objectivo central era atacar a democracia, combater a difícil democratização de Portugal depois de 25 de Novembro. Infelizmente muita gente mistura tudo e, como em todas as misturas, atinge-se os justos e protegem-se os criminosos. Em editoriais do "Diário de Notícias", tem-se feito a mais completa confusão destas coisas de "terrorismo", "luta armada", "nacionalismo", misturando a ETA, a FLEC, a UNITA. Aí se tem dito que é apenas a diferença do nosso olhar que define quem são ou não os terroristas. Nada disto tem sentido, porque há um método fundamental que separa as águas. É o de saber se o actos se realizaram ou não numa democracia ou numa ditadura. Depois, há um segundo método: que é o de saber se, mesmo em ditadura, a violência actua indiscriminadamente pelo terror contra os direitos humanos, porque, se o faz, é também terrorismo. Em muitas guerras de "libertação nacional", os actos de terrorismo não podem em nenhuma circunstância ser justificados, seja quais forem os pretextos. Isto, em português corrente, significa que a ETA é uma organização terrorista e a FLEC ou a UNITA não o são, embora pratiquem actos que podem merecer a qualificação de terrorista. O mesmo acontece, aliás, com os tchetchenos, que viram o apoio à sua luta nacional severamente limitado por, em nome da independência, existirem grupos que actuavam de forma terrorista. Aliás, para o caso de Angola e da Federação Russa o Estado é igualmente culpado de actos do mesmo tipo, enquanto só na cabeça autista dos etarras é que existe "terrorismo de Estado" no País Basco. Há casos raros em que estas distinções são difíceis de fazer, como é o caso da Irlanda, talvez o mais complexo, mas convinha não esconder as fracturas essenciais debaixo do relativismo. Tudo isto se aplica às FP-25 de Abril. Não há, em primeiro lugar, qualquer paralelo entre a luta armada antes e depois do 25 de Abril. Antes do 25 de Abril realizaram-se actos de violência que se intensificaram em vésperas de 1974, mas eles realizaram-se num contexto de completa ausência de liberdades públicas, de violência policial, com recurso sistemático à tortura, de censura, de ditadura e de guerra. Por influência da cultura política dominante na oposição mais radical, o terrorismo era veementemente condenado. Por estranho que possa parecer para a cultura política superficial nos dias de hoje, foi o facto de haver uma tradição política na nossa esquerda mais radical de predominância marxista-leninista, quer na versão soviética quer na maoista, que o terrorismo político não teve expressão em Portugal. A tradição comunista no PCP e nas organizações de extrema-esquerda de raiz marxista-leninista valorizava a "luta de massas" e condenava o terrorismo e os atentados individuais. Com excepção da tentativa anarquista contra a vida de Salazar, não houve atentados pessoais nem sequer contra agentes da PIDE até ao 25 de Abril. Houve roubos, assaltos, sabotagens, mas todas as organizações que as realizaram, a ARA, as Brigadas Revolucionárias actuavam com prudência suficiente para evitar mortes. Por razões de rigor histórico, há que dizer que, nas vésperas do 25 de Abril, a tentação terrorista estava a ganhar um novo alento. A influência crescente da deriva terrorista francesa da Gauche Proletarienne e italiana, com o aparecimento do "partido armado" que entre outros deu origem às Brigadas Vermelhas, estava a ganhar força. Se o 25 de Abril tivesse demorado alguns anos, seria inevitável o aparecimento de atentados individuais em Portugal. Felizmente, o 25 de Abril exerceu um poderoso efeito de cortar cerce estas tendências e de dissolver a geração que lhes podia ter dado corpo na vida democrática. Nada disto tem a ver com as FP 25 de Abril, que não são herdeiras da luta contra a ditadura de Salazar e Caetano. Elas são um produto serôdio da imitação do terrorismo europeu, numa altura em que ele já estava profundamente infiltrado pelos serviços secretos da URSS e dos países do Leste, actuando, entre outros meios, pelas suas ramificações árabes. As FP surgem em Portugal com o objectivo específico de lutarem contra a democracia. Dez anos depois do 25 de Abril é o combate contra a normalização democrática, a estabilização do Estado, o arranque da economia de mercado, a progressiva hegemonia eleitoral do PS e PSD sobre as tentativas de se fazerem "socialismos à árabe", e o fim das sequelas "revolucionárias", que mantinham os militares tutelando a democracia civil, era contra tudo isto que as FP-25 de Abril actuavam. Formadas pela habitual conjugação entre alguns sobreviventes do PRP-BR, mais o recrutamento entre os católicos progressistas (que tantos recrutas deram em Itália às Brigadas Vermelhas) alguns criminosos comuns e uma direcção político-militar onde predominava Otelo, símbolo de todas as irresponsabilidades em nome da sua infinita vaidade e ambição de poder. O resultado foi o que se viu - puro terrorismo político, crimes contra tudo o que são os fundamentos da democracia e dos direitos humanos.Os que estiveram na vanguarda do combate às FP-25 de Abril e que tinham que dar a sua cara ao risco das balas mudaram a sua vida para sempre, quando não a perderam. Os "arrependidos", os de baixo, a "massa de manobra" dos generais emproados na "revolução", também pagaram demasiado caro. Só os de cima ainda lá estão, sem uma palavra de distância, sem entregarem uma arma ou explosivo, sem pagarem um tostão às vítimas, prontos para o "talk show", com esta arrogância que nos fere a todos. Também aqui os homens de carácter perderam e os que não o têm ganharam. É por isso que os portugueses estão feridos, vítimas colectivas da cobardia face às FP-25 de Abril.

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