San Domingo: Paraíso do Ditador Trujillo

Recém-editado em Espanha, "La Fiesta del Chivo" é o mais recente romance de Mario Vargas Llosa. Um retrato poderoso de uma das mais longas e sanguinárias ditaduras da América Latina.

Poucos autores no século XX, e mesmo na história da literatura, demarcaram com tanto rigor os ambientes em que os seus livros se desenvolvem e as causas que defendem - ao mesmo tempo que usam a experiência pessoal como matéria-prima para a literatura - sem que estes dois factores alguma vez se tocassem. Sartriano, em relação ao compromisso do escritor e ao seu papel na sociedade, Vargas Llosa também teve as suas causas, entre as quais o rompimento com a revolução cubana e as eleições presidenciais em 1990, no Peru, que perderia para Fujimori.Como Sartre, também Llosa é daquela raça de escritores que dificilmente concebe a separação dos géneros. Escreveu romances, contos, teatro, passou pelo cinema, monografias, quase sempre com excelentes resultados. E, mais uma vez sartrianamente, manteve sempre uma grande fidelidade aos seus temas e às suas angústias: conflitos geracionais ("Conversas na Catedral", "Os Cadernos de Dom Rigoberto"), a instituição militar ("A Cidade e os Cães", "Pantaleão e as Visitadoras"), a dignidade e a covardia, temas que atravessam toda a sua obra. Em "La Fiesta del Chibo", recentemente lançado em Espanha, a acção decorre na República Dominicana. Urania Cabral regressa a Santo Domingo, 40 anos após se ter ido embora, depois de passar por uma experiência da qual nunca mais se esqueceria. Três histórias cruzam-se e encadeiam-se, segundo o modelo de narração popularizado pelos americanos (Faulkner, Dos Passos). Enquanto Urania regressa a casa e encontra o pai vegetando, desperta-lhe a memória para um passado doloroso. Foi para isso que lhe pagou os cuidados médicos, não permitindo que morresse. Para que espiasse o seu pecado. O remorso é muito pior do que a morte.Urania desfia a história dos 30 anos da Era Trujillo, uma das mais longas e mais sanguinárias ditaduras da América Latina. Outras histórias entrecruzam-se. Os últimos dias do ditador, esmagado entre as pressões da administração Kennedy, as reivindicações dos bispos católicos e os inimigos íntimos "contra os quais não pode lutar", a incontinência e a impotência. Algures, à saída da cidade, uma dúzia de atiradores de élite esperam, entediados ("vem ou não vem?") o ditador, para encerrarem um capítulo na História de Santo Domingo, os 30 anos de trujillismo. Uma ditadura cujos excessos haveriam de inspirar muitos autores sul-americanos.Trujillo, "O Pai da Pátria", um dos seus muitos epítetos, colocou em seu nome todas as indústrias do país. Nomeou o filho, Ramfis Trujillo, com aprovação do Congresso, coronel do Exército aos sete anos de idade, general, aos dez, em cerimónia pública na presença de todo corpo diplomático. Aproveitou as viagens ao estrangeiro dos seus íntimos colaboradores, para conhecer a intimidade das suas mulheres. Mandou exterminar à machete 20 mil haitianos. O seu maior feito seria, entretanto, a operação de rapto de Jesus de Galíndez - activista basco que escrevera contra ele - em plena Nova Iorque, e torturá-lo até à morte numa das suas cadeias privadas (mas isto é outro romance, "Galíndez", de Vasquez Montalbán).Quando finalmente os insurrectos conseguem crivar de balas o ditador, começa o pesadelo. O golpe não funciona, e os assassinos são presos, seviciados e drogados por médicos para que continuem a ser torturados. Ramfis, o psicopata que lidera a operação, não dissera diante do corpo do pai "Não serei magnânimo como tu foste com os teus inimigos"? No rescaldo do golpe de Estado, entra em acção o imperturbável Balaguer, sucessor escolhido por Trujillo, que joga a cartada decisiva para não perder a cabeça nem sucumbir ao poder dos militares. Enquanto este passado ganha vida, Urania, 40 anos depois, conta às tias, atónitas e escandalizadas, por que razão fugiu de San Domingo com 14 anos de idade, porque nunca respondeu às cartas do pai e porque nunca deixou que homem algum se aproximasse dela. E como, poucos dias antes do fim de Trujillo, o pai dera a maior prova que um ditador pode esperar de um subordinado. Existirá forma maior de mostrar fidelidade ao líder do que oferecer a filha de 14 anos para ser desflorada num acesso de raiva pelas mãos do ditador?É um dos melhores livros de Vargas Llosa. O mais violento, certamente. Sobre o regime mais ignóbil que se pode impor a um povo: a ditadura. Contra todas as ditaduras.

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