Torne-se perito

O mistério do HIV

A origem da epidemia de sida continua a ser um mistério. Mas a questão não é apenas a de procurar uma explicação racional para o surgimento da infecção pelo HIV entre os seres humanos: a reputação de investigadores que trabalharam no desenvolvimento de uma vacina contra a poliomielite nos anos 50 está também em jogo, como se provou durante um debate realizado em Londres.

Qual é a origem do vírus HIV, que já causou quase 20 milhões de mortos? Ainda não há uma resposta para esta pergunta, mas as duas principais teorias para a origem da infecção defrontaram-se segunda e terça-feira em Londres, na Royal Society. As análises realizadas aos restos de uma vacina contra a poliomielite testada em África nos anos 50 não permitiram concluir que esta terá sido o início da epidemia de sida, transmitindo a forma do vírus típica dos chimpanzés aos humanos, conforme defende um livro recentemente publicado. Mas, além da reposta não ser conclusiva, a polémica vai muito para além do confronto de teorias científicas. A confiança que o público tem nos cientistas e a reputação dos investigadores que trabalharam no desenvolvimento daquela vacina contra a poliomielite estão em causa.A teoria mais aceite na comunidade científica para o surgimento do vírus da sida entre os seres humanos estipula que este terá sido transmitido ao homem por chimpanzés. Provavelmente, as primeiras vítimas terão sido caçadores, que comeram carne de chimpanzé infectado com SIV (a variante do HIV nos símios). Segundo esta teoria, apoiada em estatísticas baseadas em análises das taxas de mutação do vírus, o surgimento do HIV em África ter-se-á dado, o mais tardar, nos anos 50. A progressiva facilitação das viagens e dos contactos entre cidadãos de todo o mundo terá feito o resto, resultando na epidemia global, que começou a ser detectada na década de 80.Mas há uma teoria concorrente, surgida no início dos anos 90, e que suscita mais hostilidade do que interesse na comunidade científica. Esta teoria diz que o HIV terá surgido devido aos ensaios de uma vacina contra a poliomielite desenvolvida por Hilary Koprowsky, do Instituto Wistar, em Filadélfia (EUA), e outros dois laboratórios belgas. Esta vacina, afirma o jornalista Edward Hooper no livro "The River", publicado o ano passado, foi desenvolvida utilizando células de rim de chimpanzé como meio de cultura do vírus da poliomielite. Como este é o nosso primo mais próximo no reino animal, se os chimpanzés usados estivessem infectados com o SIV, a passagem para os seres humanos seria relativamente fácil.Hilary Koprowsky sempre negou que tivesse usado rins de chimpanzés, mas os registos do seu trabalho são muito sumários e há testemunhas que dizem que o investigador usou estes animais, quando trabalhou na actual República Democrática do Congo (ex-Zaire) e inoculou cerca de um milhão de pessoas com a sua vacina experimental, entre 1957 e 1960, numa região que inclui ainda os actuais Ruanda e Burundi. Hooper diz que, dos 28 casos de sida detectados em 1980 que tiveram origem em cidades africanas, 23 eram de locais onde a vacina experimental tinha sido aplicada ou de povoações num raio de 280 quilómetros. As conclusões de Hooper baseiam-se em grande parte nestas coincidências geográficas e temporais e foram suficientes para que o Instituto Wistar aceitasse que amostras dessa vacina, preservadas no gelo há mais de 40 anos, fossem testadas por laboratórios independentes. Os resultados desses testes - efectuados no Instituto Pasteur, em Paris, e no Instituto Max Planck, na Alemanha - foram divulgados agora, na Royal Society londrina. "Os testes não revelaram a presença de SIV ou HIV nas amostras, nem material genético de chimpanzés", afirmou Claudio Basilico, um microbiólogo da Universidade de Nova Iorque que coordenou estas análises.Mas quer isto dizer que a hipótese defendida por Hooper e alguns cientistas caiu por terra? "Não, mas torna-a mais improvável", comentou Basilico. No entanto, se a amostra alguma vez conteve vírus, estes podem ter morrido, durante os 40 anos que estiveram congelados. Estes resultados também não serviram para desarmar Hooper, que trouxe novas testemunhas a Londres, que afirmaram saber que a equipa de Koprowsky usou células de rins de macacos para fabricar a vacina - e não apenas para testá-la, como diz o cientista. Aliás, Koprowsky apresenta-se neste debate numa posição algo delicada: mais do que apresentar provas científicas, o que ele faz é defender a sua honra. E esse é uma das formas pelas quais Hooper ataca a questão, pelo que denunciou na Royal Society saber de casos de testemunhas que foram coagidas a negar os depoimentos que antes lhe tinham feito. A situação tornou-se até algo caricata, segundo vários jornais britânicos, pois várias testemunhas foram chamadas tanto por Hooper como por Koprowsky para dizerem exactamente o oposto, consoante depunham pelo jornalista ou pelo investigador.A única coisa certa, portanto, é que a polémica vai continuar - tal como a epidemia que, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Sida (Unaids), atinge 34,3 milhões de pessoas actualmente. Só em 1999, surgiram 5,4 milhões de novas infecções. A epidemia, que continua a crescer em África, deixou já 13,2 milhões de órfãos e continua a aumentar, especialmente entre as mulheres.

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