Querem ver dança africana?

Dança irónica, política, combativa, melancólica, suave. Seis companhias africanas mostraram no Festival de Dança de Montpellier, em França, que a modernidade se inventa a partir de múltiplos percursos. O último espectáculo português, "Dan Dau", de Clara Andermatt, foi recebido pelo público com entusiasmo. O festival terminou ontem: a título de balanço deste grande evento assinale-se o risco assumido pela sua direcção artística.

O que é a modernidade na dança africana? É o percurso que cada criador, em cada país, decide realizar para dar continuidade à sua existência. Estes percursos - onde se cruzam experiências corporais oriundas de vários contextos e experiências de uma vida e paz incertas - são múltiplos, como o mostraram as companhias africanas (do continente ou da diáspora) que foram apresentadas ao longo destas duas semanas no Festival de Dança de Montpellier, em França. Da África do Sul chega-nos a dança de cariz fortemente político de Robyn Orlin. Dança étnica sul-africana, o "glamour" hollywoodesco, as danças sociais norte-americanas, a construção de sonhos do musical e o "ballet" ocidental misturam-se em aparente alvoroço no espectáculo hilariante "Daddy, I've seen this piece six times before and I still don't know why they're hurting each other..." Por detrás da comédia, Robyn Orlin, sul-africana, branca, de 44 anos, faz do espaço cénico um lugar de declarações políticas: contra a hierarquização das várias formas de dança; contra o elitismo dos corpos no "ballet". "O 'ballet' fez parte da ideologia colonialista e imperialista da África do Sul, e todos os apoios financeiros iam para aí", explicou Orlin, em conferência de imprensa. "Isso agora acabou, mas o problema é que não há muito mais coisas em alternativa, e os teatros estão todos a fechar", continuou.Mas Orlin não precisa de um teatro tradicional para as suas peças. "Daddy, I've seen this piece...." desenrola-se num palco móvel quadrangular à volta do qual se dispõem, em pé, os espectadores. Em cada uma das esquinas há folhas de papel de cenário, onde se desenham sombras chinesas ou de onde irrompem divertidas personagens. Uma delas é um cisne negro que parece ter desertado de "O Lago dos Cisnes" e que ao som da música de Tchaikovski vai enfarinhando o corpo. As referências coreográficas desmultiplicam-se. Uma diva, que em simulado descuido deixa cair os toucados, reenvia-nos para o universo de Hollywood. Bailarinos de diversos géneros de dança entram uns atrás dos outros, expulsando do palco os anteriores - uma dança guerreira da etnia Xhosa (um grupo Zulu) ou um divertido "cha-cha-cha". As geometrias destas danças, que estão a ser filmadas em directo por uma câmara alteada, são-nos devolvidas por quatro televisores em imagens a preto e branco, citando o mundo de sonho e ilusão criado pelas coreografias e filmes de Busby Berkeley.A ironia e o humor estão também presentes em "Black Spring", de Heddy Maalem, mas de uma forma bem diferente. Filho de pai argelino e mãe francesa, e instalado em Toulouse, Maalem montou o espectáculo com quatro bailarinos de origem africana a residir em França e outros quatro estabelecidos no continente (Nigéria e Senegal). O tema centra-se em torno de imagens-clichés sobre os negros - as cores garridas das suas indumentárias, a sexualidade intensa dos seus corpos e danças, e a ideia de África como um continente de culturas homogéneas. Um bailarino indaga: "Querem ver dança africana?", pergunta à qual se seguem caricaturas de várias danças étnicas, com ostensivos tremores de nádegas e barrigas.Salia Sanou e Seydou Boro, bailarinos que têm trabalhado em Montpellier com a coreógrafa Mathilde Monnier, regressaram ao Burkina Fasso para formar a sua própria companhia. É de lá que nos vêm as imagens nostálgicas (movimentos arrastados) ou vibrantes de esperança (movimentos angulosos, amplos, desencadeados a partir do peito) da peça "Taagalà, le voyageur". Um espectáculo onde a música (tocada ao vivo) e a dança dependem uma da outra. Clément Djro Koutouan e Béatrice Kombe Gnapa (ambos da Costa do Marfim) fizeram das suas danças acrobáticas - "Pourquois nous?" e "Sans repère", respectivamente - momentos combativos e de expressão de violência. Mas em "Rona", do coreógrafo sul-africano Boyzie Cekwana, voltamos a encontrar imagens de esperança, na interioridade, serenidade e subtileza dos movimentos. Os espectáculos africanos foram filmados pelo canal franco-alemão, ARTE, para o documentário "Montpellier Danse 2000, points de vues d'Afrique" que será emitido, também em Portugal através da TV Cabo, no próximo dia 19, às 20h45.

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