O computador e a fé

Utopia - o "não-lugar", a imaginação da mais perfeita e fantástica sociedade - é um termo criado por S. Tomás Moro, para descrever a "melhor forma de república" na ilha que inventou. É longa a história do pensamento utópico. Com o desabar da única utopia realizada - o comunismo - e a contagem aterradora das suas vítimas, muitos julgaram que o espírito humano ficaria definitivamente vacinado contra a tentação de imaginar sociedades ideais, perfeitas, limpas de contradições. Sem memória do paraíso perdido e sem esperança de encontrar a terra sem mal, julgou-se que a nossa espécie acabaria por ter juízo e aprenderia a reconciliar-se com o mais óbvio, a nossa incurável finitude, que nunca conseguirá mais do que alguns e precários fragmentos de felicidade. E se, como alguns dizem, não vimos de lado nenhum e vamos para muito perto, abandonemos o mundo das ilusões e, como aconselha o sábio Goelet, deixemos de correr atrás do vento (Ecl 4,16).Acontece que sem alguma ilusão e imaginação prospectiva não é possível viver. Mesmo Goelet, que não se cansava de repetir - "ilusão das ilusões, tudo é ilusão" -, nunca levou o seu desencanto até ao desespero. Nietzsche, que suspeitava de tudo, reconheceu a necessidade da ilusão para viver. Embora a caça ao sucesso rápido e individual seja a utopia mais acarinhada, o panorama actual da imaginação utópica e bem mais complexo como se pode ver no interessante "dossier" sobre o renascimento da utopia, organizado pelo "Magazine Littéraire" (n. 387, Maio 2000).Retenho o depoimento do canadiano Pierre Lévy - filósofo das mutações técnicas e culturais, sobre a utopia por excelência, a unidade da humanidade, o mundo sem fronteiras e sem guerras, que julga ao alcance da mão, isto é, ao alcance do computador!Como meio de comunicação, o ciberespaço é provavelmente aquele que se desenvolveu mais rapidamente. Dentro de alguns anos, uma grande percentagem da população estará conectada. Haverá apenas um sistema de exploração e não haverá senão um megacomputador planetário. Num só espaço de comunicação teremos todos os signos produzidos pela cultura - com o inglês, pelo menos, como segunda língua para toda a gente -, o que anuncia uma só esfera semiótica para a humanidade. Sermos criativos em conjunto será o grande jogo!Com o ciberespaço, as utopias são ainda mais necessárias. Porque não imaginar o melhor? O fim da escravatura, a democracia, a libertação da mulher, etc., arrancou quando ninguém julgava possíveis tais conquistas. As novas tecnologias inscrevem-se nesse movimento. Uma melhor comunicação entre os seres humanos é a utopia fundadora. Começou com a escrita, o alfabeto, a imprensa, os meios electrónicos e, em breve o ciberespaço, o mundo global para onde tudo converge. A utopia das novas tecnologias e a utopia da inteligência colectiva. É a capacidade de partilhar conhecimentos, imaginar a cooperação inteligente, a proximidade de todos os seres humanos entre si.É em tom de desafio que Pierre Lévy conclui o seu depoimento: "Tudo é possível, mas nada está garantido. Pertence-nos fazer explodir a diversidade, não seguir o rebanho."As Igrejas cristãs não têm motivos para encarar estes desafios com cepticismo. Sabem que não estão só perante uma revolução tecnológica, mas na passagem para uma nova cultura, para uma nova forma de apreender e exprimir o mundo.Peço alguma paciência teológica para mostrar - pelas razões mais tradicionais - que há motivos divinos para algum optimismo.A comunicação pertence à própria estrutura da existência. É por ela que nos tornamos o que somos, tanto na vida corporal como espiritual. É em termos de comunicação que as Igrejas entendem a relação com Deus: Ele fala, de forma muito misteriosa ao homem e o homem responde-Lhe de modo não menos misterioso na oração. As comunidades cristãs confessam que o Verbo se fez "carne", isto é, fragilidade humana, abolindo assim a separação entre a absolutatranscendência de Deus e as possibilidades ilimitadas do homem. O Espírito Santo é o espírito da utopia da comunicação perfeita. Venceu, na simbólica do Pentecostes - celebrada no domingo passado -, o mito da Torre de Babel, quer na versão totalitária da existência de uma só língua universal, quer na imagem da incomunicação entre os povos devido à multiplicação das línguas. Como dizem os Actos dos Apóstolos, a suprema utopia foi realizada: "Cada qual os ouvia falar na sua própria língua" (Act. 2, 8-13).É também em termos de comunicação que se exprime a relação da natureza humana e divina em Cristo. Hoje, na Igreja Católica, celebra-se a comunicação no amor do Pai, do Filho e Espírito Santo. A máxima unidade diz-se na infinita diferença. Não é indiferente que todos os seres humanos sejam criados à imagem do mistério da Santíssima Trindade e da sua liberdade.Por mais voltas que se tente dar à aventura humana, esta só pode ter êxito se for possível conseguir realizar a união na diferença. Pierre Lévy garante que esta utopia está doravante ao nosso alcance, ao alcance da mão, isto é, ao alcance do computador. Senhor, aumentai a minha fé! E, sobretudo, a inocência.

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