Na disposição de Wong Kar-wai

Com a voz de Nat King Cole terminavam os filmes a concurso da 53° edição do Festival de Cannes. Ouvia-se em "In the Mood for Love", com que Wong Kar-wai arrebatou os corações dos que ficaram até ao fim para ver o último filme da competição.

A fasquia tinha sido colocada demasiado alta para James Gray, o cineasta que em 1995 realizou "Little Odessa" e que cinco anos depois chegou a Cannes com a promessa de ser "the next big thing". "The Yards", dizia-se, ia proporcionar a confirmação de um novo talento, funcionando para Gray como "Pulp Fiction" funcionou para Quentin Tarantino (depois de "Cães Danados") ou "Magnólia" para Paul Thomas Anderson (depois de "Boogie Nights"). As ambições e o "media hype" foram fatais. Gray, 30 anos, também não fez as coisas por menos porque em cada entrevista ia alardeando o seu gosto por filmes de Coppola e de Scorsese, que são referências mais ou menos comuns à geração actual do cinema americano, mas, sobretudo, por Visconti ("Rocco e os seus irmãos") e pelos outros grandes italianos, de Rossellini a Vittorio deSicca. Mas de facto a vaia que se ouviu depois da projecção na competição, se calhar um pouco injusta, foi uma impositiva forma de colocar as coisas no seu lugar. Em vez da "grande confirmação", "The Yards" sai de Cannes com o incómodo perfume não de "bluff" mas de obra insuflada por uma ambição, ou por uma amplitude, que nunca consegue suportar, ficando a sensação de que é menos um filme e mais uma sequência de "highlights", de momentos com pretensão grandiloquente.Como "Little Odessa", Gray filma a família como reservatório melodramático: a esvair-se, no primeiro filme, exangue, reduzido ao silêncio entre dois irmãos, um pai e uma mãe; a transbordar de penas e maleitas neste "The Yards", sobre um grupo familiar mais alargado que é perturbado pela chegada de um dos seus elementos, um ex presidiário em liberdade condicional (Mark Wahlbergh, que com Joaquin Phoenix e Charlize Theron "repetem" Renato Salvatori, Alain Delon e Annie Girardot de "Rocco...", e estão à frente de um "cast" magnífico que inclui James Caan, Faye Dunaway e Ellen Burstyn). O problema de James Gray é nunca conseguir autonomizar-se das suas referências e impedir que se intrometam em cada plano as memórias de outros filmes, como um fantasma incómodo que mostra as costuras: desde "O Padrinho", marca óbvia para esta família prestes a desabar pela corrupção, até ao Elia Kazan de "On the Waterfront" (o tema da delação).Mas depois do frustrante "The Yards", a competição da 53° edição de Cannes terminava com a voz de Nat King Cole, a inundar o Palácio dos Festivais de uma doce melancolia. Na edição do ano passado, o último filme, "Rosetta", entrou de rompante para deixar atrás de si algumas mazelas no seu caminho (e arrebatou a Palma de Ouro). Este ano Cannes terminou "In the Mood for Love", com que Wong Kar-wai arrebatou os corações dos que já nada esperavam da competição - e sossegando os temores que tinham entendido "Happy Together" como um filme de passagem, confuso, à procura de um novo rumo. Pois bem, o cineasta voltou ao princípio. Este não é o Wong Kar-wai de "Chungking Express" ou de "Fallen Angels", este é o Wong Kar-wai de "Days of Being Wild", a sua obra de 1991 que, bem vistas as coisas, foi a que o revelou e desencadeou o culto que "Chungking Express" viria depois a recolher. Como nesse filme, "In the Mood for Love" mostra um trabalho de câmara mais clássico (não há planos com a câmara à mão) e uma estrutura narrativa mais definida (não é um filme edificado apenas na montagem), que reconstitui a atmosfera da Hong Kong dos anos 60. Se não é uma sequela de "Days of Being Wild" (projecto que foi concebido em duas partes, mas em que a segunda nunca foi feita) pode ser visto como uma "continuidade", como admitiu o realizador. Só que agora, a melancolia doentia e terminal dos jovens desse filme de 91 deu lugar a qualquer coisa de mais sereno, mas indubitavelmentetriste, num casal na idade madura. Não é um casal, na verdade: a questão, entre Maggie Cheung e Tony Leung, dois vizinhos que se encontram quando descobrem que os respectivos cônjuges estão a ter um "affair", é precisamente identificar o que os aproximou.Estão na disposição ("in the mood...") mas tudo é imponderável e tudo vacila, desde o seu estatuto (nunca vemos a componente física da sua relação), até esta Hong Kong "evocativa" (interiores e corredores abafados pela proximidade da vizinhança, móveis, guarda-roupa, música latina e Nat King Cole são memórias de Wong Kar-wai), passando pelas personagens, que são "impressões" - Maggie Cheung falava na dificuldade que teve para "encontrar" a sua personagem, já que o caos que Wong Kar-wai cria nas suas rodagens, mudando tudo a todo o momento, a colocou sempre em dificuldades, e as cinco ou seis horas diárias de maquilhagem e guarda-roupa construíam "o boneco" mas eram ainda insondáveis em relação à sua "interioridade".Projecto de dimensão mais pequena, rodado ao mesmo tempo que preparava outro, "2046", que o vai levar a vários países da Ásia, com um "cast internacional (de qualquer forma, "In the Mood for Love" já é filmado em Banguecoque e tem cenas finais nas ruínas de Angkor Wat, no Cambodja), é um "filme de câmara" de um pudor extremo, um melodrama sobre os fantasmas do amor que renova todo o entusiasmo em relação a um cineasta chamado Wong Kar-wai.

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