Torne-se perito

Para leste do Paraíso

Numa colina da República da Geórgia foram encontrados fósseis do que se pensa serem os primeiros hominídeos que saíram de África. Mas não são, certamente, os mais antigos antepassados dos Europeus. O seu caminho de nómadas tê-los-á levado sempre para o extremo Oriente.

Se o Livro do Genésis diz que Adão e Eva foram expulsos para Leste do Paraíso, depois de comerem da fruta proibida, a ciência parece contar uma história parecida: um artigo publicado hoje na revista "Science" relata o achado, em Dmanisi, na República da Geórgia, de fósseis de hominídeos com cerca de 1,7 milhões de anos. Os seus traços morfológicos são idênticos ao "Homo ergaster" africano, pelo que estes são os mais antigos vestígios da saída de África de representantes do género humano. Não é provável, no entanto, que sejam os nossos antepassados directos - o seu caminho deverá ter seguido para Leste, para a China e para Java.Foi num ponto elevado, onde existiu um castelo medieval, que uma equipa internacional de arqueólogos (da Geórgia, Alemanha, França e Estados Unidos) encontrou, no Verão passado, os restos de dois crânios de um hominídeo primitivo: o mais completo, que incluía a parte de cima do maxilar e alguns dentes, era provavelmente de uma adolescente do sexo feminino e o outro de um jovem macho. Mas não foi ao acaso que os arqueólogos foram a Dmanisi: em 1991, tinha já sido lá encontrada uma mandíbula. "Mas havia grandes dúvidas em relação à datação", disse ao PÚBLICO Luís Raposo, que é director do Museu Nacional de Arqueologia e avaliou a descoberta como membro do comité coordenador sobre a ocupação paleolítica da Europa, que funciona junto da European Science Foundation. O cepticismo prendia-se, não só com os métodos de datação usados, como com os dados existentes até então: os mais antigos vestígios de ocupação humana na Europa remontam há cerca de 800 mil anos - em Atapuerca (Espanha) e Ceprano (Itália), o que implicava recuar no tempo cerca de um milhão de anos.Mas o cruzamento de métodos de datação usados para os novos achados afasta as dúvidas da maioria dos cientistas, embora as suas conclusões sejam polémicas - aliás, como muitas outras questões na história da evolução humana. A morfologia dos crânios encontrados na Geórgia liga-os ao "Homo ergaster", que terá surgido em África há cerca de dois milhões de anos e ter-se-á extinto meio milhão de anos mais tarde. Mas muitos cientistas consideram que esta é apenas uma variante africana do "Homo erectus" - a primeira espécie de hominídeo a sair da savana africana. A teoria clássica diz que o "Homo erectus" só saiu de África quando entraram na chamada cultura Acheulense. Esta surgiu quando a sua indústria lítica assumiu um certo nível de sofisticação, ou seja, quando começaram a talhar instrumentos em pedra bifaces. "Mas a equipa diz ter encontrado já cerca de mil instrumentos e, apesar de no local existirem seixos grandes, que dariam para fazer bifaces, os utensílios são apenas seixos talhados", explica Luís Raposo. "Isto mostra que não foi uma revolução tecnológica que os levou a sair de África", comentou Eugénia Cunha, do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. O que teria então levado este grupo de hominídeos a subir para Norte, abandonando regiões que hoje ficam no Quénia? Os investigadores ainda não têm respostas certas, mas adiantam na "Science" que é provável que a viagem tenha sido motivada pelo movimento dos animais de que eles próprios se alimentavam. "Com o surgimento do género 'Homo', os corpos tornam-se maiores, e precisam de mais energia, de maiores doses de proteínas animais", diz Susan Antón, da Universidade da Florida em Gainesville, um dos membros da equipa, citada num comunicado da "Science". "Estes hominídeos eram caçadores-recolectores - provavelmente, mais recolectores do que caçadores. É mais fácil alimentarem-se de carcaças de animais do que terem técnicas de caça, e estes hominídeos tinham uma capacidade craniana ainda muito limitada, abaixo dos 800 centímetros cúbicos [a dos seres humanos modernos é, em média, de 1500 centímetros cúbicos]", salienta Eugénia Cunha.Além disso, aquela região, entre a Europa e a Ásia, era um porto de abrigo agradável para esta humanidade vinda do calor das estepes africanas. "Há 1,7 milhões de anos, a Europa estava a entrar em mais uma Idade Glaciar. A neve era permanente", diz Luís Raposo. Mas naquele cantinho da Geórgia, o ambiente ainda era ameno - como o prova a presença de fósseis de animais africanos no local, por exemplo. "Em termos de paisagem, geologia, flora, fauna, clima e ecossistema, esta zona era uma espécie de placa giratória entre a África, a Europa e a Ásia", acrescenta o arqueólogo. A ocupação do resto do continente europeu era difícil e pouco agradável. Por isso, estes hominídeos não devem ser os mais remotos antepassados dos europeus. O mais provável é que estes grupos nómadas tenham avançado, pelos caminhos do Levante, para a Ásia - até chegarem a Java (Indonésia), que nesse tempo era acessível por terra, sublinha Eugénia Cunha. Cada geração é capaz de avançar 25 quilómetros em relação ao seu ponto de origem, pelo que em 300 gerações, membros deste mesmo grupo da Geórgia poderiam ter coberto os cerca de 7500 quilómetros que separam o Quénia de Java.Em Java e na China, aliás, encontram-se fósseis de hominídeos para os quais é estimada uma antiguidade semelhante, embora as datações também estejam em debate. Mas os fósseis asiáticos não apresentam uma semelhança tão clara com os africanos como os de Dmanisi, o que talvez possa também ser explicado por fenómenos evolutivos das populações locais, diz a investigadora. Seja como for, este achado enterrado sob os restos de um castelo medieval da Geórgia torna a Europa um continente um pouco mais interessante, fazendo recuar bastante a sua história de ocupação humana. Mas, como salienta Luís Raposo, há ainda que perceber o que se passou no milhão de anos que separa estes "Homo ergaster" do "Homo antecessor" - o nome que a equipa espanhola que estuda Atapuerca deu aos arcaicos e extremamente robustos homens que ali viveram, há cerca de 700 ou 800 mil anos.

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