Torne-se perito

Menino, sabes o que é a Pátria?

Há 25 anos, Portugal vivia as suas primeiras eleições livres depois de 48 anos de ditadura. O clima de calor revolucionário em que foi eleita a Assembleia Constituinte levou a que os militares moderados tivessem um plano alternativo para o caso de fraude. Seguiram-se meses de desassossego e discussão ideológica, que incluíram um cerco ao Palácio de São Bento.

Pelo Livro de Leitura da 3ª classe estudaram todos os portugueses maiores de 35 anos, a quem foram inculcados os valores de Deus, pátria e família, da obediência ao chefe do Governo e a todos os superiores, do amor à terra, da alegria do trabalho rural, da alegria na pobreza, dos encantos da vida das mulheres com ranchos de filhos, da clara (mas pacífica) barreira entre os papéis sociais masculinos e femininos. Um autêntico tratado da mais pura ideologia do Estado Novo, uma doutrina dirigida aos infantes da pátria, cujo efeito ainda nos dias de hoje é susceptível de várias interrogações. Não mantemos, afinal, aqui e ali e onde menos se espera, vínculos com a estrutura salazarista de pensamento? Afinal, foram quase três gerações de portugueses bafejados com uma das armas fundamentais do regime: a propaganda que, como diz Fernando Rosas, "começa pelo mais simples, na sala de aula, passa pela organização dos tempos livres, enforma a assistência à família, a acção corporativa rural, piscatória ou industrial e o enquadramento miliciano da juventude". No ano lectivo de 1973, o ministro da Educação da época, Veiga Simão, retira o Livro da 3ª Classe da circulação escolar, substituindo-o por uma "experiência pedagógica". O novo manual anuncia a primavera seguinte: despojado da retórica nacionalista, a capa do novo livro já não tem a mocidade portuguesa, mas flores, muitas flores alaranjadas. "Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever"Salazar, 26/5/1936, discurso das comemorações do "Ano X da Revolução Nacional" "Menino, sabes o que é a Pátria?". O primeiro texto do Livro da 3ª Classe começa assim, o patriota faz-se aos dez anos. "A Pátria é a terra em que nascemos, a terra em que nasceram os nossos pais e muitas gerações de portugueses como nós. É nossa Pátria todo o território sagrado que D. Afonso Henriques começou a talhar para a Nação Portuguesa, que tantos heróis defenderam com o seu sangue ou alargaram com o sacrifício de suas vidas. É a terra em que viveram e agora repousam esses heróis, a par de santos e de sábios, de escritores e de artistas geniais. A Pátria é a mãe de nós todos - os que já se foram, os que vivemos e os que depois de nós hão-de vir". É logo no início que se anunciam as linhas-mestras do que vem a seguir: "A Pátria é o solo abençoado de todo o Portugal, com as suas ilhas do Atlântico (Açores e Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe...), as nossas terras dos dois lados da África, a Índia, Macau e a longínqua Timor. Para cá e para além dos mares, é nossa Pátria bendita todo o território em que, à sombra da nossa bandeira, se diz na formosa língua portuguesa a doce palavra Mãe!...".Mais à frente, na pág. 17, um novo texto retoma a ideia. O título é "Portugal é grande" e enuncia mais detalhadamente os territórios ultramarinos. "Se observarmos num mapa tudo o que é nosso, reconheceremos logo que Portugal tem possessões em quase todas as partes do mundo (...) Ao vermos a enorme extensão do Império português, admiramos o heroísmo com que os nossos antepassados - sábios, marinheiros, soldados e missionários - engrandeceram a Pátria. Por ela atravessaram mares desconhecidos, sofreram as inclemências de climas insalubres e travaram lutas cruéis em paragens longínquas. Aprendamos a lição do seu esforço, para amar e servir, como eles, a nossa querida Pátria".Mais à frente e quase no fim do livro, ao lado da fotografia do contra-almirante Américo Tomaz, Presidente da República a explicação sobre a pátria é mais didáctica: "A nossa Pátria é uma grande família formada por todos os portugueses, sem distinção de lugares ou de raças. Como todas as famílias, também tem um chefe que superiormente a dirige e a representa - é o Chefe de Estado, que hoje se chama Presidente da República. Numa família digna, o chefe, que é o pai, tem de ser querido, respeitado e obedecido pelos filhos. Também, numa nação cônscia dos seus deveres, o Chefe tem de ser estimado e honrado pelos que a constituem. Tributar veneração ao nosso Chefe de Estado, prestar-lhe as honras devidas pelo alto cargo que exerce e cumprir o que ele manda é, pois, dever de lealdade para com a Pátria, que temos obrigação de amar e servir". Uma recomendação: "Se alguma vez, meus meninos, passar por vós Sua Excelência o Presidente da República, ou vos encontrardes na sua presença, saudai-o respeitosamente, vendo nele o Chefe Supremo da Nação a que vos honrais de pertencer, o Chefe da grande família portuguesa".Também assim é "o governo da Nação", explicado ao lado de uma gravura com um busto de Salazar, presidente do Conselho. "Dentro da nossa família, os pais e outros superiores têm o encargo de velar pela nossa educação e por tudo o que nos é necessário para a vida. Exercem, por isso, uma autoridade a que devemos obedecer. Na grande família que é a nação portuguesa há também autoridades que nos governam e a quem compete cuidar da organização e orientação dos serviços públicos (...) É ao Governo da Nação que devemos a defesa do território português e dos seus habitantes, a organização dos serviços públicos, como os de educação, justiça e assistência, e a protecção que nos dispensam nos outros países (...) Todos os portugueses devem respeito e obediência ao Governo da Nação".A começar em D. Afonso Henriques e a acabar em Américo Thomaz todos os heróis da pátria são glorificados. "O Estado Novo" é um texto de página e meia, onde sucintamente se explica o que aconteceu na sequência do golpe de 28 de Maio de 1926. "Com o Estado Novo abriu-se para Portugal uma época de prosperidade e de grandeza, comparável às mais brilhantes de toda a sua história. Começámos a ter dinheiro bastante para todas as despesas do Estado e ainda para desenvolver a nossa riqueza e levar benefícios a todas as terras, mesmo às mais humildes e distantes. Os nossos campos foram mais bem cultivados e deram mais frutos. A nossa indústria tornou-se próspera. Desenvolveu-se o comércio. Repararam-se as estradas existentes e fizeram-se outras. Rearmou-se o exército. Restaurou-se a marinha de guerra e a mercante. Melhoraram-se as instalações dos portos. Levou-se o telégrafo e o telefone a muitas localidades".(...) "Deu-se água potável, em fontes de construção simples mas elegante a muitas povoações que tinham dificuldade em a obter. Nas principais cidades construiram-se hospitais (...) Construiram-se muitas escolas e hão-de construir-se as que forem precisas para que todas as crianças em idade escolar tenham onde educar-se e instruir-se. Os patrões e operários entraram em boas relações e passaram a estimar-se e a auxiliar-se uns aos outros, do que resultou maior riqueza e bem-estar (...) Essa acção há-de prosseguir sem descanso, e com ela o engrandecimento de Portugal que, pela profunda transformação operada, é hoje respeitado e admirado pelas outras nações".Umas páginas à frente explicar-se-à às crianças o significado do Hino Nacional: "Ouvimo-lo em dias tristes? - O coração ganha logo coragem e aumenta a nossa fé no engrandecimento da Pátria imortal. Cantamo-lo em horas de vitória? - O céu e a terra portuguesa ficam logo em festa, e despertam e fortalecem-se em nossas almas os sentimentos de amor à Pátria e de fidelidade em a servir, até nos lances mais arriscados, à custa da própria vida. Chega a parecer-nos que as vozes de todos os heróis que deram o seu sangue para que a Pátria vivesse independente e livre exultam connosco na celebração das glórias nacionais (...) Logo que as primeiras notas comecem a ouvir-se, todo o português deve tirar o chapéu e conservar-se na posição de sentido enquanto durar a sua execução, em homenagem à voz da Pátria que o hino nacional representa".Além de trabalhar e venerar a pátria e os chefes, votar e pagar impostos eram também deveres do bom cidadão. "O pai do Rui almoçou cedo nesse dia, porque desejava ser dos primeiros a cumprir o dever de votar nas eleições para a junta de freguesia da sua terra. - Não! - dizia ele para a mulher - não posso nem quero ficar indiferente perante um acto de que depende o progresso da nossa povoação", lê-se no texto "O dia das eleições". Era normal que fosse só o pai a votar porque o voto era um exclusivo dos "chefes de família" e só foi concedido às mulheres alfabetizadas em 1969, já com Marcelo Caetano à frente do "Conselho"."Também nas eleições para a Assembleia Nacional e até para as do Presidente da República se manifestava sempre nele a vontade forte de intervir com o seu voto no bom andamento da administração pública. A sua consciência, muito sã, levava-o a aceitar com a maior boa vontade todos os incómodos e sacrifícios para que o país pudesse ser bem administrado".No texto "As contribuições" o diálogo entre "o tio José da Lameira" [a expressão tio aplicada a não-familiares era característica do mundo rural] e o seu "compadre João Moleiro" é elucidativo: "Dize-me cá, ó compadre! Sabes que a estrada por onde vamos hoje à vila é lisa como uma folha de papel e dantes estava cheia de covas, não é verdade? (...) Escuta: sabes que, para beber, só tínhamos a água dum poço e que hoje temos um chafariz de duas bicas? (...) E que a escola era do palheiro do José Bernardo com umas janelitas feitas à pressa, e que hoje temos aí um edifício novo, que até a gente se regala de o ver? E depois para ordenar e manter os serviços públicos, para fazer isto tudo e outras coisas mais que a gente vê, a bem de nós todos, o Governo tem de ter dinheiro, não é verdade?(...) E o dinheiro damos-lho nós, os contribuintes, pagando as contribuições.".Em 1970, a população agrícola já só estava nos 32 por cento, mas vinte anos antes a agricultura "dava de comer" a metade dos portugueses. Fosse porque "a pena gongórica de António Ferro [se] encarrega de transformar a família camponesa, o trabalho rural, a 'casa portuguesa' e esse mundo de aldeias pobres, mas onde 'há sempre uma côdea ou um caldo' no esteio e no símbolo da harmonia social, das virtudes pátrias e da estabilidade do regime" (História de Portugal, direcção de José Mattoso), fosse porque a estabilidade do regime se fortifica no mundo agrícola, menos permeável do que o operariado aos flagelados ventos de Leste, o Livro da Terceira Classe praticamente ignora a indústria, as artes e os ofícios. O país é de trabalhadores agrícolas e as alegrias do campo (em que a miséria das populações é inversamente proporcional ao mito, que perdura até hoje, sobre uma alegada 'vida saudável') são gongoricamente exaltadas pelo manual. O texto "A Vida no Campo" (pág. 12) é elucidativo: "O Manuel António desde pequenino começou a gostar da vida no campo. Ainda no berço, muitas vezes adormeceu à sombra das árvores, arrulado pelo canto dos passarinhos, enquanto a mãe lidava no amanho da terra. Mais tarde, quando já andava na escola, aproveitava as horas livres para ir fazer companhia ao pai e ajudá-lo nas fainas da lavoura. (...) Às vezes, na hora da labuta, ouvia a voz do pai a cantar atrás dos bois enquanto o arado ia rasgando a terra. As arvéloas acudiam a catar a bicharia nos regos da lavrada. As margaças e o terrunho ainda fresco lançavam no ar tépido aromas sadios; e nessas ocasiões o Manuel António, extasiado e pondo os olhos no pai, sentia crescer lá dentro de si uma grande vontade de ser lavrador. Quando chegou à idade foi para soldado. Voltou à sua terra cheio de saudades do pai, dos bois e das lavradas. Casou. Tem hoje um rancho de filhos. Trabalha e é feliz. Na aldeia todos o respeitam".Mais à frente, os prazeres de "As Mondas": "Lembram-se? Ranchos de raparigas alegres, muito amigas de cantar, andam no meio das searas, debruçadas sobre a terra, a arrancar as ervas ruins, para o trigo poder crescer à vontade. É o trabalho da monda. A labuta não as cansa. Saem de casa de manhã cedo, a rir, como se fossem para uma festa. Levam o dia a cantar ao desafio com os melros e as cotovias; e ao largarem o trabalho, à hora do sol-pôr, voltam para casa ainda a rir e a cantar. Todo o trabalho é assim: dá saúde e alegria, mormente o que se faz ao ar livre".Também "As regas" (pág. 56) alegram o povo: "É um encanto regar. Quase sempre descalços e de calças arregaçadas, os homens encarregados de tal serviço costumam levar o dia cantando (...). E, quando a noite desce, a frescura das terras regadas ameniza o ar e convida ao recolhimento e ao descanso, na paz de consciência dos que bem trabalharam para a merecer". E "Os Ceifeiros", que "levam todo o dia debruçados sobre o trigo", contribuem para o quadro idílico - "Escorrem-lhes nas fontes grossas bagas de suor. No entanto, nem sombra de tristeza se lhes descobre no rosto. Pelo contrário, a regularidade com que abraçam as hastes para logo as cortarem com a foice e as deixarem, às paveias, no restolho, e a alegria com que atiram para o ar as suas cantigas, fazem-nos crer na sua felicidade. É que não há trabalho custoso, quando não falta a vontade de trabalhar". Também "as vindimas são o trabalho mais alegre das fainas agrícolas. Homens e mulheres entram nos vinhedos com redobrada alegria, já porque a faina é leve, já porque as videiras lhes oferecem francamente o delicioso manjar das uvas amadurecidas. De vez em quando abelhas enfurecidas enterram o ferrão na pele de quem lhes anda a roubar a reserva de açúcar, mas nem por isso deixa de haver alegria. A azáfama é sempre grande e não há cansaço que diminua o entusiasmo de todos".Há uma imagem feminina inesquecível, que é a Maria da Várzea, que tem seis filhos e que dá o bom exemplo à senhora D. Arminda, de Lisboa, que só tem um filho que já lhe "dá que fazer". Mais uma vez, o antagonismo campo-cidade, que perpassa um pouco por todo o livro, com o campo como tendencial depositário das virtudes. Vamos ao texto, intitulado "Orgulho de mãe": "A Maria da Várzea chegava da horta. Trazia à cabeça uma cesta com feijão verde, cenouras, pimentos, couves e nabos e, ao colo, um filhinho ainda de leite. Na sua frente corria, já em direcção a casa, o Manuel, de cinco anos. Ao vê-la chegar cheia de cansaço e logo rodeada pelos outros quatro filhos que tinham ficado em casa sob a direcção da mais velha, a senhora D. Arminda, de Lisboa, que estava a passar as férias na aldeia, não pôde conter-se que não dissesse: - Que pena me faz, senhora Maria da Várzea! Ainda tão nova e já com tantos filhos e tantas fadigas! Eu tenho um e já me dá que fazer. Resposta pronta: - Pois eu, com tanto trabalho e tantos filhos, sinto-me muito feliz, minha senhora. É a vida das mulheres casadas cá da nossa aldeia. Os filhos e as canseiras que eles nos dão é que são a nossa riqueza. É por eles que nós somos felizes".As outras figuras femininas também indiciam o arquétipo da mulher ideal do Estado Novo. As meninas da terceira classe já sabem cozinhar uma refeição e dedicam-se ao arranjo da casa; os rapazes são vistos a ajudar os pais no campo, a brincar com os outros, a fazer perguntas sobre ciência e até lhes é tolerado serem "travessos incorrigíveis" desde que "de excelente coração" e disciplinados perante os pais (como "O Jorge", na pág. 22), o que significava, por exemplo, só falar quando o interrogassem. Naturalmente, e tendo em conta o futuro que lhes estava destinado, o "asseio", a ordem e a obediência eram valores primaciais das raparigas: "Desde pequenina, a Maria de Fátima gostava de ter os vestidos arrumados e limpos. De vez em quando lá deixava algum brinquedo fora do seu lugar, mas bastava uma pequena advertência da mãe para pôr tudo como devia. Na escola, desde a primeira classe que tem merecido a simpatia da sua professora pela pontualidade com que todos os dias comparece, pela prontidão com que faz os seus exercícios, pela boa vontade com que escuta os seus conselhos e pelo arranjo e asseio dos livros e dos cadernos. Não é muito inteligente, mas é das que mais sabem (...)".A Joaninha "logo que se levanta, lava-se, penteia-se, veste-se e calça-se (...) Reza as suas orações, almoça e vai para a escola. Pobrezinha, mas muito lavada, vestido nem nódoas nem rasgões, é um encanto vê-la (...) À tarde, faz os trabalhos indicados pela sua professora e ajuda a mãe nas lidas caseiras. No arranjo da casa é desembaraçada e já consegue dar beleza às coisas. Na cozinha faz, quando é preciso, qualquer refeição de que todos gostam".

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