Males de amor

Como tudo começou não sabe. Talvez tenha sido de pequenino, porque o ambiente até ajudava e o movimento de teatro amador da Figueira da Foz fervilhava de um fervilhar ingénuo. Ou então mais tarde, no selim de uma bicicleta pela história da humanidade fora, num espectáculo cosido a meias com o amigo José Luís Iglésias e pago com falcatruas várias e "t-shirts" Nike habilidosamente falsificadas - uma fecunda "despedida de solteiro" que fez de António Durães um actor com certezas. Tempos em que "fazia o que podia para ser actor" e sentir o medo feito de dores de barriga que o palco lhe garante: "Nos bastidores, quando estou à espera de entrar em cena, invento imensas dores e maleitas. E depois entro e não penso em mais nada".Detesta os exercícios de retrospecção, talvez até ver-se ao espelho e caracterizar essa personagem que vai vivendo no dia-a-dia de actor e director da Rádio Universitária do Minho (RUM): "Quando era miúdo sonhava com um epitáfio: 'Aqui jaz António Durães, que sempre quis ser mais actante que expectante'. Um pouco mais tarde, brincava: 'Aqui jaz António Durães, que sempre quis ser mais actante que expectorante'. Hoje já não procuro definir-me. Talvez as pessoas que acompanham o meu trabalho tenham pachorra para pensar em que prateleira se enfia este boneco", admite na voz imensa de muitos metros de altura que faz a sua imagem de marca.Olhar para trás é assim. Ter de novo dez anos e reencontrar o primeiro grupo de teatro, onde era "ensaiador, actor principal, figurinista, autor das peças" e o que mais fosse preciso, num mundo em construção, autêntica fábrica Lego em que tudo era possível: "Reuníamo-nos num anexo que estava em obras. Havia imenso tijolo, o que dava para construir tudo: mesas, portas, grandes cadeirões de tijolo". Ou tropeçar no Durães mais velho e formado, que deu por si a ter algumas propostas de trabalho, a instalar-se em Braga - de onde sai de vez em quando para não sentir sempre que está "escondido do mundo a fazer teatro na clandestinidade" -, a ser contratado pelo Teatro Nacional S. João e a viver desde o início outra aventura chamada Sindicato de Poesia. Sente-se um actor completo, mesmo quando faz rádio e veste a pele de director de programas da RUM. Não sabe se é para sempre, mas também não vive de prazos: as coisas duram enquanto dá. "Vou ficando enquanto tenho oportunidade de crescer mais um bocadinho", explica. Enquanto houver medo a crescer no peito antes de cada começo: "Há uns anos atrás, quando os meus colegas se queixavam do medo, pensava que era tudo armanço... Se calhar, graças a Deus: há que manter uma certa magia". E pronto, nem será bem medo, antes uma "insegurança absolutamente maricas", motivada talvez por um imenso pudor: tudo menos defraudar expectativas. E mesmo que a evolução seja permanente, e cada vez maior a consciência da imperfeição, haverá sempre lugar para os pequenos milagres e as grandes anedotas do passado: "Lembro-me de quando fiz o 'Alfama' do António Botto, no Naval 1º de Maio, com um fatinho de marujo de alguém que usava o L. Eu uso XXL. De repente, as calças rasgaram-se completamente e eu tive de passar o resto do espectáculo sentadinho, parecia uma tia. Nessa altura, quando tinha 18 anos, era a coisa mais importante do mundo. Todas as coisas que fui fazendo foram as mais importantes do mundo. Como a RUM: éramos todos tão putos... Definitivamente putos, lançados para a frente, a levar tudo à cabeçada. Pela RUM uma série de pessoas já passou as passas do Algarve", António Durães incluído. Neste momento anda, como sempre, a aprender a ser actor. O que, no seu dicionário, equivale a um extenuante exercício de narcisismo: "Há um lado narcísico num tipo que se expõe, sem que ninguém lhe aponte uma arma às costas, para contar histórias às pessoas. Mas ser actor é sobretudo trabalhar para caraças". Entre muitas outras coisas, porque teatro é sempre esquizofrenia: "Ser actor é oferecer-se em sacrifício em cada espectáculo. Brincar ao jogo do faz-de-conta. Feito de uma série de regras, mas com esse carácter lúdico imenso. Se não fosse isso ninguém aguentava: ser actor é sofrer do coração".

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