Madames no exílio

Quase cincos anos após a peça ter sido encomendada a Maria Velho da Costa, "Madame" saltou finalmente para o palco. Aproveitando as comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, Ricardo Pais convidou dois nomes maiores do teatro nacional e brasileiro - Eunice Muñoz e Eva Wilma - para interpretarem as figuras femininas centrais de "Os Maias", de Eça de Queirós, e de "Dom Casmurro", de Machado de Assis. A partir do final dos dois romances, articula-se um prolongamento surpreendente.

Naquele que é o romance mais emblemático do realismo queirosiano, "Os Maias", o desfecho acontece com a partida de Maria Eduarda para Paris. Imagine agora que a cidade francesa se apresenta a esta personagem como um exílio luxuoso, onde a exuberância, o álcool e o dinheiro se convertem num bálsamo para o desastre da relação inconscientemente incestuosa com o seu meio-irmão, Carlos da Maia.No outro lado do Atlântico, Machado de Assis, um autor cuja mestria fez tanta escola no meio literário brasileiro como Eça em Portugal, condenou também ao desterro Capitolina (ou melhor, Capitu), a personagem feminina de "Dom Casmurro" que, acompanhada pelo filho, nascido de uma ligação adúltera, foi obrigada pelo marido a refugiar-se na Suiça. Num hipotético prolongamento deste romance, Capitu, senhora de um carácter irrequieto, poderia mudar-se para Paris, onde o seu filho prosseguiria os estudos de Arqueologia. Lançado o mote, uma nova história começa a configurar-se a partir de um encontro casual, nos primeiros anos do século, num café elegante da capital parisiense: Maria Eduarda e Capitu cruzam os seus destinos, adquirindo o protagonismo que lhes é recusado nos livros originários. Uma nova ficção, um momento de "literatura em cena", como lhe chama o encenador Ricardo Pais, foi o que fez Maria Velho da Costa com "Madame", que ontem estreou no Teatro Nacional S. João, no Porto, protagonizada por Eunice Muñoz (Maria Eduarda/Eulália) e Eva Wilma (Capitu/Francisca).A ideia que esteve na origem deste encontro ficcional inédito data de alguns anos atrás, quando o cenógrafo António Largato, que assina a cenografia e os figurinos, procurou um texto exclusivo para Eunice Muñoz e Fernanda Montenegro. A actriz brasileira foi quem sugeriu a colagem das personagens de Machado de Assis e de Eça, autores contemporâneos que chegaram a trocar correspondência. Em 1994, Carlos Avilez, director do Teatro Nacional D. Maria II, encomendou a Maria Velho da Costa uma peça que seria dirigida por Ricardo Pais. Contudo, mesmo depois da edição do texto, pela Sociedade Portuguesa de Autores/Publicações D. Quixote, o projecto foi sendo adiado e Montenegro acabou por abandonar a iniciativa devido às múltiplas solicitações que derivaram da sua nomeação para o Óscar de Melhor Actriz em "Central Brasil". A morosidade, no entanto, teve um efeito oportuno e compensador: a estreia de "Madame" no ano das comemorações dos 500 anos da descoberta do Brasil, tendo Ricardo Pais conseguido juntar a Eunice Muñoz uma das suas actrizes favoritas, Eva Wilma. Como se movem, então, Maria Eduarda e Capitu no esplendor e na luxúria de Paris? Terão elas esquecido o passado, ou revisitam-no experimentando novas versões dos seus dramas pessoais já inscritos em "Os Maias" e "Dom Casmurro"?Raramente ao longo de "Madame" Eduarda e Capitu aludem explicitamente às vivências nos seus países de origem - a contextualização dos romances é feita através das personagens de Eulália e Francisca, criadas, de Manuel Afonso de Runa (António Rama), que alega ser parente de Eduarda, e de Ezequiel (Philippe Leroux), filho de Capitu. Recusando a lembrança de um passado que atormenta, as duas mulheres deixam-se contaminar por alegrias distintas, "uma europeia e a outra marcadamente transatlântica", como refere Ricardo Pais, vivendo um destino que nada tem de improvável. E no qual se denota uma singular intuição de Maria Velho da Costa, sublinha o encenador, ao corporizar nas personagens uma atracção pela frivolidade e pelo arrojo - ao mesmo tempo que se pressente na dupla literária um desejo intrínseco, perene. Tão longe e tão perto uma da outra - a língua materna não é a mesma língua: "O português e o brasileiro, para se entenderem, têm de traduzir-se", aponta Maria Velho da Costa no programa da peça -, Eduarda e Capitu desenham, então, um "espaço de liberdade feminina", onde a interpretação assume-se como uma leitura, não apenas dos livros originários, como também da própria essência do artista. "Todo o teatro é uma leitura insistente", explica Ricardo Pais, evocando a cena inicial em que Eunice e Eva lêem pequenos extractos de cada um dos romances. Mais à frente, a intenção é reiterada em "Queridas leitoras", acto no qual uma pergunta da actriz portuguesa - "Você acha que ela [Capitu] foi inocente ou culpada?" - resvala num apontamento significativo sobre o ofício de representar. "Nós não reflectimos", responde a brasileira, "flectimos. Nós não pensamos, suamos. Não temos de saber, mas de deixar ser. E nunca se está segura da diferença entre a arte e o embuste, entre o talento e a fraude, na nossa profissão". Abel Barros Baptista, no texto "A cena oblíqua e dissimulada", incluido no programa de "Madame", disseca este momento: "A peculiar dramatização daquela passagem do pensar ao suar, do reflectir ao flectir, do saber ao deixar ser, define a coincidência do trabalho das actrizes com esta específica acção de contracenar: ambas obedecem e repetem, e ambas se mostram num intervalo da representação para sublinharem que o seu trabalho consiste em obedecer e repetir". Nesta "espécie de 'boulevard' metafísico", nota Ricardo Pais, existem algumas disparidades com o texto publicado. Em Novembro do ano passado, com o início das leituras da peça, a autora apercebeu-se do que havia de "errado e incompleto e obtuso" na obra editada, tendo reformulado algumas cenas. "Maria Velho da Costa compreendeu que muitas cenas eram resultado de uma escrita surda", diz Pais, acrescentando que os ensaios possibilitaram a realização de "muito trabalho dramatúrgico". Numa co-produção do TNSJ e do Teatro Nacional D. Maria II, em colaboração com o Ministério da Cultura brasileiro, "Madame" estará em cena no Porto até 22 de Abril, e no Teatro Tivoli, em Lisboa, de 5 a 21 de Maio. Em Julho, fará uma pequena digressão no Brasil, passando por São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro.

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