Torne-se perito

Por que é que os processos prescrevem?

As prescrições vão estar hoje na ordem do dia, com o debate parlamentar a pretexto do caso Aquaparque. Mas, afinal, por que é que os processos prescrevem? Por que razão são atirados definitivamente para a gaveta, sem julgamento, casos que não chegaram ao fim apenas porque houve incumprimento de prazos? Onde é que está o mal? O PÚBLICO foi à procura de respostas para estas perguntas - e ouviu o sociólogo Boaventura Sousa Santos a apontar o dedo á classe política e o jurista Figueiredo Dias (segundo o qual a ideia de que quem é culpado deve pagar sempre pelo seu crime "não é função do Direito Penal" - e daí a figura das prescrições) a admitir que o sistema judicial português padece de uma excessiva formalização dos actos, de "uma ligação quase sexual ao papel".

O coordenador do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJP), Boaventura de Sousa Santos, considera que é tempo de a classe política "assumir as suas responsabilidades" quanto à situação de "pré-colapso" da Justiça portuguesa. Na véspera do debate parlamentar sobre a crise no sector, motivado desta vez pela possibilidade do caso do Aquaparque vir a prescrever - e onde o juíz de instrução do processo é apontado como responsável -, o sociólogo de Coimbra afirma que "os políticos estão a tirar a água do capote" ao tentar criar a ideia de que o problema está apenas no funcionamento da Justiça. "Parte desse problema é de responsabilidade da classe política, pois é a esta que cabe legislar".Um caso concreto em que aponta o dedo aos políticos refere-se à lacuna legislativa que existiu entre 1987 e 1995 sobre o acto processual capaz de interromper os prazos de prescrição dos processos. É que, no Código de Processo Penal de 87, a instrução preparatória que era presidida por um juíz foi substituída pela fase de inquérito, a cargo do Ministério Público (MP). Mas não foi feita a equivalente alteração no Código Penal, pelo que deixou de ser motivo de interrupção dos prazos de prescrição a audição do arguido pelo juíz na extinta fase de instrução preparatória. A correcção só foi feita em 1995.O ministro da Justiça, António Costa, apoia-se nesta lacuna para afirmar a impossibilidade de evitar as prescrições de casos ocorridos nesses oito anos, e atira as culpas para o legislador. Boaventura responde afirmando que o legislador é o poder político e que "ninguém pode escapar à suspeita de que o atraso na correcção da lacuna serviu para permitir a prescrição de alguns casos, sobretudo as fraudes ao Fundo Social Europeu".Outra questão concreta referida pelo coordenador do OPJP é relativa às amnistias e perdões de penas, instrumentos aprovados pelo parlamento, Governo e Presidente da República. Ao recorrer a estes instrumentos, a classe política "contribui para a descredibilização do sistema", afirma, dizendo que "Portugal deve ser o único país a conceder perdões genéricos para cobrir todos os processos disciplinares" (ver fichas)."O poder político não pode alijar a sua responsabilidade, pois é quem detém meios efectivos para intervir e se não o faz é porque não quer", afirma Boaventura Sousa Santos. E elenca os poderes que tem a classe política para alterar o panorama da Justiça: "É ela que legisla sobre a organização, funcionamento e gestão dos tribunais, a racionalização dos serviços, as normas processuais, os meios alternativos de gestão dos litígios e ainda sobre recursos, "que são um entrave significativo à aceleração dos processos".Contra a "cultura de cinismo e de laxismo" que diz existir dentro do sistema judicial, Boaventura Sousa Santos defende que a grande medida de que a Justiça precisa é o exercício "duro" do poder disciplinar, nomeadamente sobre os magistrados que não cumprem prazos. E também aqui sublinha o papel do poder político, que nomeia a maioria dos membros do Conselho Superior da Magistratura (CSM).Quanto ao Ministério Público, o Observatório está neste momento a ultimar um estudo sobre os arquivamentos dos processos à beira das prescrições, no qual já se identificou uma das causas da morosidade que conduz à ultrapassagem dos prazos que atiram os processos definitivamente para a gaveta: a grande deficiência na recolha das provas. "As testemunhas de um crime são frequentemente ouvidas dois anos depois dos factos, e é fácil de perceber a grande erosão que a prova sofre com estes atrasos". Apesar disso, Boaventura elogia o "esforço significativo do MP para acelerar os inquéritos". "É preciso evitar as demonizações fáceis e romper com o círculo de atribuição de culpas entre magistrados judiciais, do MP e funcionários", sublinha Boaventura. "Como sociólogo, compreendo os motivos das críticas à Justiça estarem hoje a recair sobre o Procurador-Geral da República: ele foi o grande artífice do sistema actual, foi ele que empunhou a bandeira de uma Justiça portuguesa moderna e independente. Enquanto os magistrados judiciais se colocaram na sombra, ele assumiu o protagonismo positivo. Agora está a colher o protagonismo negativo", comenta.Para Figueiredo Dias, autor do anteprojecto do Código Penal de 1982, as prescrições são um mal necessário do sistema, até porque este está "completamente esmagado" pelo aumento "exponencial" de litigiosidade. Como explica este professor, o pensamento que está subjacente às prescrições é o de que, passado um certo tempo sobre os crimes, as finalidades da punição já não se conseguem cumprir. Nem a prevenção geral, no sentido de dar o exemplo, porque "tudo se esquece", nem a prevenção especial, relativa à ressocialização do delinquente. "Se este se comportou bem desde o crime, não precisa de ser ressocializado; se se portou mal, provavelmente está preso por outros processos". Embora seja discutível, Figueiredo Dias entende que não deve haver crimes imprescritíveis, nem mesmo os de guerra ou contra a Humanidade. "A ideia de retribuição [de que quem é culpado deve pagar pelo seu crime] vale para sempre, mas não é essa a função do Direito Penal", defende.Quanto aos motivos que conduzem tantos crimes à prescrição, o professor aponta algumas causas "óbvias": "O sistema prático não funciona. Faltam funcionários, magistrados, meios técnicos, as perícias demoram eternidades. Por outro lado, temos uma excessiva formalização dos actos, uma ligação quase sexual ao papel", diz, referindo-se em concreto às notificações (ver fichas). Para contrariar esta situação, Figueiredo Dias diz que "é preciso desformalizar o processo penal": promover outras formas de mediação de conflitos que não a via judicial, despenalizar as bagatelas penais, o consumo de drogas, os pequenos diferendos entre pessoas. E estabelecer prioridades na acção penal: "No século XXI, a Justiça tem de ser orientada pelo princípio da oportunidade". Medidas que, indo ao encontro do que diz Boaventura, estão nas mãos da classe política.

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