Mulher das cidades futuras

As homenagens são a armadilha do crepúsculo. Uma luz vibrante e surpresina incide por momentos na fábrica das sombras emergentes e os pássaros dos olhos assistentes voam para dentro de auroras improváveis.As homenagens parecem-se com o Segundo Advento - tão próprio destes tempos primomilenares - e, tal como o original, não têm realidade para além do seu próprio anúncio.As homenagens, quando não se homenageiam a si próprias - o que é comum -, correm sempre o risco de deixar o homenageado na posição do acrobata retido pela antecipação do suicídio: a posição de não ser o que se diz dele, nem de poder reivindicar como seu o que a homenagem omite a seu respeito.Quem convive de perto com homenagens não pode furtar-se a compará-las com o lápis da censura. Com uma diferença. É que a homenagem, ao contrário do lápis da censura, não se limita a cortar o que não pode ser dito, escreve em seu lugar o que deve ser dito.A homenagem tem uma temporalidade perversa, porque dramatiza o tempo retrospectivo a ponto de deixar exangue o tempo prospectivo. Por isso, no fim do tapete vermelho está sempre um calvário. Os holofotes, se inundam de luz as rotundas da homenagem, deixam sem luz os subúrbios da alma, o atalho por onde o futuro procura escapar. A homenagem é assim um passado futuro que não deixa ao futuro outro tempo senão o passado.Também por esta razão, todas as rupturas ou cortes em que as homenagens são exímias sangram para dentro. O fulgor das palavras douradas navega à vista das vísceras, mas sempre por fora do homenageado. Dentro, a solidão cumpre a árdua tarefa de curar as feridas e recensear os danos depois de tão insólita e perturbada tempestade.É este o terror fenomenológico das homenagens, e, se falo dele, é apenas para mostrar que não estamos aqui para homenagear ninguém, e muito menos para homenagear a eng. Maria de Lourdes Pintasilgo. O motivo da nossa convocatória é uma acção cívica de protesto contra a cultura de desperdício de capital humano que assola o nosso país, a qual lhe permitiu, durante quase duas décadas, dispensar os préstimos, os serviços, os talentos de uma das mais lúcidas personalidades políticas e intelectuais deste século. Não é caso único, mas é um caso gritante. Não admira que Portugal seja tão escasso em figuras maiores neste século. As sondagens finisseculares aí estão a mostrá-lo com aquela cegueira treinada e autorizada que só sabe sondar o que está à vista. Primeiro, foi o ditador que durante quase 50 anos foi fazendo queimadas em redor de si para semear epígonos, tiranias avulsas, mediocridades de mercearia aviadas em papel costaneira com peso ratado. Os campos de cultura onde cresceu noutros países a criatividade económica, política, social e cultural, donde emergiram nas artes as figuras maiores que as sondagens dos outros países nos trazem, ficaram entre nós estéreis à espera de melhores dias. E os dias melhores vieram com o 25 de Abril e a terra brotou de novidade. Maria de Lourdes Pintasilgo, ministra dos Assuntos Sociais, primeira mulher embaixadora destacada da UNESCO, primeira mulher primeiro-ministro, em 1979-80.Mas o 25 de Abril ocorreu num país que tem séculos de condão de ser menor que o seu tamanho, e as mediocridades e as tiranias, desta vez democráticas, estavam à espera de sua hora. E ela chegou pouco depois. Claro que a hora era outra, o papel costaneira tinha sido substituído pela "tetrapack", o peso a granel por embalagens seladas e com prazo de validade. A feira das vaidades tinha sido substituída pelo supermercado das vaidades. Houve naturalmente rupturas nas famílias políticas, mas as famílias dos gestos, as famílias das ideias e dos preconceitos não mudaram senão muito lentamente. E isso tornou-se evidente na primeira metade da década de 80, como bem mostra o pungente, desconcertantemente apologético e revoltantemente verdadeiro depoimento do ex-Presidente Ramalho Eanes neste volume.Portugal nessa altura, com a desorbitação que lhe é tão própria, parecia ter passado do condão de ser mais pequeno que o seu tamanho para o condão de ser maior que o seu tamanho, empoleirado nas andas que a União Europeia lhe oferecera de mão beijada. Mas a desorbitação era a mesma e o desperdício era maior.A dispensa do talento de Maria de Lourdes Pintasilgo aprofundou-se, pois. E assenta num conjunto elaborado de dispositivos. O primeiro foi o dispositivo do apagamento e consistiu em varrer a Maria de Lourdes do imaginário dos portugueses, ocultando todo o notável desempenho que até então tivera, mesmo como primeira candidata mulher à Presidência da República. Tratou-se de inculcar a ideia de que a Maria de Lourdes nunca existira. Tratava-se de um dispositivo radical que para ser eficaz teria de ser complementado por outros. O dispositivo complementar a que se recorreu foi o dispositivo da sub-rogação ou, se se preferir, o dispositivo do travesti sem mudança de sexo. Nos seus termos, a Maria de Lourdes Pintasilgo não existiu. De facto, quem existiu foi uma senhora e a designação aqui é crucial - uma senhora muito parecida com ela mas mais utópica, uma senhora católica e dada às boas obras, como é timbre das senhoras de sociedade, muito idealista e sem qualquer sensibilidade para o realismo e o pragmatismo de que é feita a boa política. Este foi o dispositivo mais corrosivo e sem dúvida aquele que legitimou o boicote de informação nos meios de comunicação social de que sofreu Maria de Lourdes Pintasilgo anos a fio, colocada na lista negra pela mão de uma abantesma, afinal familiar, feita de mediocridade, de machismo, de inveja e de revanchismo.Mas estes dispositivos não foram suficientes para justificar a eliminação e a proscrição e, afinal, o desterro interior. É que, entretanto, depois de uma passagem impostamente "low profile" no Parlamento Europeu, a Maria de Lourdes Pintasilgo começara a assumir lugares de destaque na cena política europeia e internacional. E, para além de membro do Conselho de Interacção que juntava ex-primeiros ministros, Maria de Lourdes Pintasilgo foi nomeada conselheira da Universidade das Nações Unidas em Tóquio, presidente do Grupo de Trabalho da OCDE sobre "A mudança estrutural e o emprego das mulheres", presidente do Grupo de Trabalho do Conselho da Europa sobre Igualdade e Democracia, presidente do Comité des Sages sobre a Europa dos Direitos Cívicos e Sociais, presidente do conselho directivo do Instituto Mundial de Investigação sobre o Desenvolvimento Económico da Universidade das Nações Unidas e presidente da Comissão Independente sobre a População e Qualidade de Vida.Perante todo este reconhecimento e visibilidade, que desmentia os dispositivos de apagamento e de sub-rogação, e para justificar o que era cada vez mais visto pelos cidadãos como um desperdício, foi accionado um terceiro dispositivo do-pois-para-isso-é-que-ela-é-boa. Ou seja, a Maria de Lourdes Pintasilgo existe afinal e até tem qualidades, só que elas não podem ser valorizadas no tipo de problemas com que se defrontam o Estado e a sociedade portugueses. Claro que temos de ter representantes de peso na ONU e nas missões especiais, mas isso deve ser deixado aos embaixadores de carreira, ou seja, aos embaixadores no carreiro contra o qual se revoltou a formiga do Zeca Afonso. Claro que temos Macau, mas isso, na continuidade do nosso colonialismo, deve ser deixado para os militares. Claro que temos Timor, mas, na continuidade do colonialismo português, Timor deve ser deixado para os padres.E assim chegámos aqui. Compreendeis agora porque não estamos a homenagear a Maria de Lourdes Pintasilgo. Estamos, quando muito, a denunciar as múltiplas desomenagens de que foi vítima nos últimos 15 anos. Estamos aqui para reivindicar que a personalidade que foi apagada da cena política e a senhora dada às boas obras são uma e a mesma pessoa. Estamos aqui para protestar contra a pequena política que, quanto mais se miniaturiza, mais miniaturiza as suas sombras, não lhe restando outra alternativa senão apagar de vez o que não cabe no seu minúsculo claro-escuro.Estamos aqui, em segundo lugar, para afirmar que a Maria de Lourdes Pintasilgo não precisa de homenagens, nem sequer de protestos denunciatórios. Estamos aqui para afirmar que a Maria de Lourdes Pintasilgo apenas precisa de espaço. Levantamos a nossa voz para que esse espaço, que está no mapa do nosso descontentamento, seja transcrito no mapa maior das nossas aspirações de aprofundamento da democracia, de construção de uma sociedade mais justa, mais livre, mais equilibrada no uso dos recursos naturais e humanos, uma sociedade onde a igualdade e a diferença possam enriquecer-se no respeito recíproco de uma pela outra. Aqui reside o testemunho mais eloquente de Maria de Lourdes Pintasilgo. O testemunho do inconformismo assente na defesa daquilo que num país limitado não pode ter limites: a luta pelo aprofundamento da democracia contra a superficialidade das representações fantasma; a luta pela transparência e a responsabilização contra a corrupção e a privatização do Estado; a luta pelo direito à diferença como proliferação de espaços públicos não estatais, onde a igualdade na diferença seja o outro lado da diferença na igualdade.Estamos aqui, finalmente, para celebrar o poder das convicções e a inspiração que elas podem gerar. Nestes tempos beatíssimos que vivemos, as convicções da Maria de Lourdes Pintasilgo não são um expediente político. São um compromisso ético e político, cultural e social, um compromisso que pode ser partilhado por muitos que, não partilhando as suas convicções, se sentem inspirados pela força e pela luminosidade que jorra delas.Maria de Lourdes Pintasilgo, se, apesar de tudo o que eu disse, esta reunião se parece com uma homenagem, a culpa não é sua - é quiçá de quem, como nós, não sabe estar à sua altura.* intervenção feita na sessão pública a propósito dos 70 anos de Maria de Lourdes Pintasilgo, terça-feira, no Palácio Foz, em Lisboa

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