Egas Moniz, um Prémio Nobel posto em causa

Em 29 de Novembro encerra-se o ciclo das comemorações do cinquentenário da atribuição do Prémio Nobel da Medicina a Egas Moniz inteligentemente projectado pela Casa Museu Egas Moniz em Avanca e a Câmara Municipal de Estarreja. Todavia, a atribuição do Prémio Nobel ao autor da psicocirurgia pelo método da leucotomia pré-frontal ainda hoje não é pacífica.Em 1936, onze anos depois de ter realizado a primeira angiografia, uma das mais importantes descobertas da medicina do século XX, Egas Moniz publica em França (Masson) as "Tentatives Operatoires dans le Traitement de Certaines Psychoses". Egas Moniz, que iniciou o ensino da Neurologia em Lisboa em 1911, sempre se interessou igualmente pela Psiquiatria. Com efeito, é ele que em 1915 dá a conhecer aos médicos portugueses em lições e artigo publicado em "A Medicina Contemporânea", a Psicanálise, Freud e "Die Traumdeutung" ["A Interpretação dos Sonhos"]. Em 1917 publica um livro, "A Neurologia na Guerra", uma análise das consequências do comportamento psíquico e social dos sobreviventes de feridas no cérebro. Egas Moniz estava convicto da inevitabilidade da Psiquiatria se libertar de conceitos filosófico-psicológicos e adquirir uma orientação organicista. O tratamento cirúrgico de certas psicoses obsessivas mais tarde denominada "leucotomia pré-frontal" não nasceu de repente. Para Egas Moniz, "todo o organismo contribui para a elaboração da vida psíquica, mas o sistema nervoso central, o cérebro, é a sede das manifestações mentais". Da análise da documentação clínica publicada sobre lesionados ou doentes com feridas do cérebro, acidentais ou cirúrgicas e da sistematização sintomatológica dos diversos sectores atingidos deduziu que o lobo frontal modificava profundamente a personalidade, provocando perturbação do humor e do carácter, das tendências, da iniciativa, da espontaneidade das emoções e dos movimentos expressivos. Os lobos frontais deviam concentrar a maior parte das excitações e dos estímulos da vida exterior e interior. Um dos lobos frontais pode ser substituído pelo outro, a perda dos dois lobos frontais não representa o aniquilamento total da vida psíquica, escreveu. Baseando-se na estrutura histológica descrita por Cajal e no estudo dos reflexos por Pavlov, admitiu ainda que nas psicoses obsessivas ideias dominantes deveriam absorver todas as outras actividades psíquicas, transformando-se em fenómenos repetitivos, embora conscientes; os estímulos atravessariam sempre as mesmas vias de conexões e, por isso, a sintomatologia todavia complexa não apresentava variações apreciáveis. Assim, para curar estes doentes seria necessário destruir os arranjos de conexões celulares particularmente os ligados aos lobos frontais. Quando fala das experiências em cães (Betcherew) e em chimpanzés (Fulton e Jacobsen) sobre o resultado da amputação dos lobos frontais, afirma: "A experiência falha bastante neste sector; não é comparável a vida psíquica do homem à dos mamíferos e mesmos dos primatas." A terapêutica da época para o tratamento de psicoses obsessivas eram o cardiozol, a insulina, o electrochoque, todos eles paliativos. Ao fim de dois anos de colheita de documentação e de reflexão, reúne três amigos, Almeida Lima, o seu colaborador mais íntimo, o psiquiatra Sobral Cid e o internista Cancela de Abreu. Os três aconselharam-no a decidir-se e, com o neurocirurgião Almeida Lima, projectou definitivamente e realizou a leucotomia pré-frontal precedida de dois pequenos orifícios de trépano em 20 doentes diagnosticados e seleccionados por Sobral Cid. Como resultado desta "tentativa operatória", sete doentes curaram-se, sete melhoraram e em seis não houve cura ou melhoras. Dez anos passados sobre a primeira intervenção de psicocirurgia em Lisboa, um estudo multicentrico da Grã-Bretanha, englobando 1000 doentes operados, chegou a conclusões idênticas.Em I 947 reúne-se em Lisboa o I Congresso Mundial de Psicocirurgia e entretanto nos EUA os neurocirurgiões Freeman e Watts e Poppen desenvolvem secções mais alargadas e muito traumatizantes usando uma espátula com processo "a céu aberto" ou por via orbitral.Depois, veio o lamentável aproveitamento da psicocirurgia para a integração social e até política de determinados indivíduos, acontecimentos chocantes realizados em países democráticos. Por fim, o explosivo progresso na pesquisa e investigação em farmacologia. A lobotomia com leucótomo foi substituída pela lobotomia química.Em 1954 começaram a avolumar-se as oposições à psicocirurgia, tendo um grupo de médicos católicos franceses reunidos em congresso condenado a psicocirurgia, submetendo a questão ao Vaticano. O Papa Pio XII manteve uma sábia reserva. No mesmo ano um professor da Faculdade de Teologia de Paris, R. P. Tesson S. J., afirmou: "Os católicos não pensam que o bisturi da leucotomia possa atingir a alma. Personalidade e alma não são a mesma coisa. A personalidade é o centro consciente das reacções consigo mesmo e com os outros." Em 1998 um programa de TV Cabo deu a conhecer um depoimento dos doutores Bridges e Sympson do Cardiff University Hospital sobre os resultados da lobotomia pré-frontal usando raios laser a 68°, técnica por eles aperfeiçoada, com bons resultados em doentes seleccionados.Ferir o cérebro como medida terapêutica desde o início levantou objecções a consciências feridas nos seus conceitos culturais ético-religiosos. A Egas Moniz como médico apenas lhe interessou curar os doentes ou melhorar-lhes o sofrimento, quando a medicina não sabia restituir-lhes a saúde. O seu ímpeto criativo levou-o mais longe sempre, como escreveu: "Caminhar com grande prudência, para que a vida dos doentes não perigasse." Egas Moniz não concebia o homem como uma criação divina, mas concebia o conhecimento do humano como conhecimento do homem ao serviço do homem com respeito pelo homem. A leucotomia como a angiografia foram necessárias no momento das suas implementações; o declínio, previsível, com o desenvolvimento de novas técnicas e meios terapêuticos. Em ciência, como na vida, tudo é inquietante, questionável, transitório. Não se pode condenar Egas Moniz.* professor da Faculdade de Medicina de Lisboa; sobrinho-neto de Egas Moniz

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