Khannouchi entra para a história

A barreira das 2h05m pode estar por um fio na maratona masculina. A corrida está lançada, os candidatos são muitos e o recente recorde mundial do marroquino Khalid Khannouchi só acelerou o processo.

A Maratona de Chicago, no domingo, voltou a proporcionar uma nova melhor marca mundial, obra do marroquino Khalid Khannouchi. Este correu a distância apenas pela terceira vez, sempre em Chicago, tornando-se o primeiro homem a fazer menos de 2h06m. O máximo mundial que o brasileiro Ronaldo Costa superou o ano passado em Berlim durara dez anos, mas, uma vez abatido o muro, muitos especialistas passaram por ele. O que talvez não se contasse para já era com um tempo da qualidade das 2h05m42s de domingo.Khalid Khannouchi nem beneficiou de um andamento mais pendular do que Ronaldo Costa o ano passado, em Berlim, para lhe arrebatar o recorde mundial. Ronaldo, que foi recentemente viver para os Estados Unidos, chegou a estar na cabeça da corrida, mas por lá não se conseguiu manter, passando desapercebido e confirmando a crise que tem arrastado depois da sua proeza alemã. Então fizera o que ninguém sequer ousara na história da prova - um "negative split" (segunda metade mais rápida do que a primeira) de tal maneira pronunciado que a 64m42s a meio juntaria 61m23s na meia-maratona complementar. Nunca nos anteriores recordes mundiais se vira uma coisa assim (ver quadro): o anterior máximo de Belayneh Densimo (2h06m50s) fora conseguido através de 63m22s mais 63m28s; Carlos Lopes, antes (2h07m12s), precisara de 63m25s mais 63m47s; Steve Jones (2h08m05s), já fizera o tal "negative split", mas mais plausível, com 64m21s a somar a 63m44s. Não se conhecem ainda em pormenor os tempos de passagem de Chicago mas é reportado já depois de meia prova um atraso de 33 segundos face aos tempos de Ronaldo Costa, o que indicia uma racionalidade semelhante na sua corrida. Khannouchi conseguiu uma segunda metade muito mais rápida do que a inicial e arrostou ainda com tempo frio e ventoso, o que aumenta a dimensão do seu feito.O marroquino chega, assim, à glória mundial com um percurso "sui generis" no mundo do atletismo. Nascido a 22 de Dezembro de 1971, nunca se preocupou muito com as provas de pista e a sua única referência importante neste particular veio em 1993, quando se sagrou campeão mundial universitário na légua em Buffalo, no estado de Nova Iorque. Voltou a Marrocos mas sentiu-se completamente ignorado pela federação nacional e resolveu emigrar para os Estados Unidos, fixando-se em Brooklyn. Casou-se com uma americana de origem dominicana, Sandra, que se tornou sua treinadora e agente, e durante anos foi-se preparando para o que ele bem sabia mas a ninguém mostrava - a maratona. Sedimentou-se como um bom corredor no circuito de estrada americano, mas este é tão impenetrável a nível internacional que tantos outros que durante anos lá brilharam nunca conheceram o destaque das parangonas internacionais. A sua explosão deu-se com a Maratona de Chicago de 1997 - estreia em 2h07m10s, a mais rápida de sempre e apenas a 20 segundos do recorde de Densimo. Era o quarto tempo de sempre conseguido com uma segunda parte de prova mais rápida - 64m09s e 63m01s para as duas metades. Este resultado levou a que Khannouchi assinasse um inédito contrato de exclusividade com aquela maratona da "wind city". Podia fazer as corridas de estrada que quisesse, mas maratona só em Chicago... Assim, lá esteve o ano passado, mas foi vítima então de um outro que se estreava como o mais rápido de sempre, o queniano Ondoro Osoro. Este venceu com 2h06m55s, Khannouchi quase reeditava o tempo do ano anterior com 2h07m19s, mas sabe-se bem que na América, mais que em qualquer outro lado, há uma diferença abismal entre ser primeiro e segundo.Khannouchi, no entanto, não desistiu do seu sonho e esta época reapareceu nas prova que antecederam Chicago mais forte que nunca. Conseguiu excelentes testes em 10km em estrada, como 27m45s em Atlanta, a 4 de Julho, e 27m48s em Cape Elizabeth, um mês volvido; correu a Meia-Maratona de Filadélfia em 60,47s, a vinte segundos do seu máximo pessoal de 1997, quando se estreou na distância. E eis o recorde na terceira vez que foi a Chicago.Depois de Ronaldo Costa ter corrido em 2h06m05s, de facto foi desbloqueado um muro psicológico e este ano já o sul-africano Gert Thys, com 2h06m33s em Tóquio (14 Fevereiro), os quenianos Josphat Kiprono, com 2h06m44s em Berlim (26 Setembro), e Fred Kiprop, com 2h06m47s em Amesterdão, domingo passado, e o etíope Tesfaye Jifar, com 2h06m49s ainda em Amesterdão, conseguiram fazer melhor que o anterior registo de Densimo de 1988. Em Amesterdão, outro queniano, Wiliam Kiplagat, obteve os mesmos 2h06m50s.Com tanto fundista a aparecer na procura da glória e dos dólares, é certo que o máximo mundial está longe de ter conhecido a última palavra e um tempo abaixo das 2h05m parece já na calha. O próprio William Tanui, segundo em Chicago no domingo, com 2h06m16s, terceiro tempo de sempre, não está de todo fora da corrida. Aos 34 anos, esta velha glória queniana, que já foi campeão mundial de 1000m, duas vezes segundo nos Mundiais de crosse e recordista, além de campeão mundial em 1995, da meia-maratona, bateu largamente o máximo pessoal que trazia de Boston, o ano passado, quando ganhou com 2h07m34s. Ao contrário de Khannouchi, Tanui precisou de muitas maratonas para chegar ao melhor de si mesmo, mas na verdade cada atleta que chega ao cume fá-lo através de um percurso muito próprio. Portanto, parece não haver receita definitiva e talvez a palavra mais decisiva dos próximos tempos seja dada com a estreia nos 42.195m do queniano Paul Tergat. Pelo menos até Chicago e à quarta maratona de Khannouchi, possivelmente já como cidadão americano.

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