Verão Latino

Na história do Verão de 99 haverá uma pequena menção: foi aquele em que os Estados Unidos entraram numa verdadeira euforia latina. Desde os anos 80 fala-se na América em "década hispânica", mas às portas do ano 2000 os norte-americanos só reconhecem os latinos como bons atletas ou artistas. No próximo milénio os latinos vão ser a maior minoria étnica, mas até lá a nova geração - aquela que já nasceu nos EUA - ainda tem muito que lutar contra os estereótipos. Há mesmo quem diga que estes cantores e actores latinos só estão a ter sucesso porque o seu tom de pele não é demasiado escuro. De qualquer maneira, este parece ser o Verão em que os latinos deram um passo na conquista desse reconhecimento. Começaram por invadir as tabelas dos tops musicais: nos quatro primeiros meses deste ano, as vendas de produtos musicais latinos nos EUA aumentaram em 48 por cento. Mas não foi fácil. Para isso os latinos precisaram de cantar em inglês. Valeram-se do chamado "crossover" - técnica que permite a um artista de uma minoria étnica, como a latina, triunfar entre o público de massas, o anglo-saxónico. Ricky Martin e Jennifer Lopez são os artistas mais conhecidos. Têm a Sony Music a tratar-lhes do marketing. Ricky conseguiu ser capa da "Time", da "Interview" e este mês está na capa da "Rolling Stone". Provoca engarrafamentos de trânsito e crises de histeria colectiva quando aparece em sessões de autógrafos ou actua ao vivo. Podia ser um modelo de qualquer marca de roupa americana (tem um vago ar de Marlon Brando) e mexe as ancas como um Elvis em rotações aceleradas (chamam-lhe "Elvis-the-Pelvis-on speed"). Tal como Jennifer Lopez, aparece com roupas Armani, Gucci, Dolce & Gabanna e Versace. São ambos bonitos, têm corpos perfeitos, sabem dançar e têm experiência como actores. Só quem ainda não dispensou alguns minutos do seu tempo para ver Ricky Martin nos vídeos, nas entrevistas que constantemente passam na MTV ou a cantar ao vivo (a sua actuação nos prémios Grammy deste ano descongelou até a mulher de Sting, que saltou da assistência ao ver aquele bambolear de ancas), é que pode alegar ignorância perante o êxito do porto-riquenho. Sentia-se acanhado por verem nele um símbolo sexual mas desde que Gloria Estefan lhe disse "Tú eres latino, amigo, y lo latino es sexual, no le des mais voltas", perdeu a vergonha. Depois de ter tido um "hit" planetário no Verão passado com o hino do Mundial de futebol - "La Copa de la Vida"(primeiro lugar em mais de 30 países) - e de ter cantado em espanhol, francês e português, conseguiu nos últimos meses abalar a América com o seu último disco. O álbum tem apenas o nome dele porque o rapaz gosta de coisas simples ("Porquê complicar o que pode ser simples?"), é cantado em inglês, inclui um dueto com Madonna e outro com a sueca Meja. Já é o disco de um artista latino mais vendido em toda a história dos Estados Unidos. Além de ser poliglota (fala fluentemente português, italiano e inglês), Ricky Martin tem toda a experiência de alguém que começou a fazer anúncios publicitários ainda miúdo e que aos 9 anos já cantava no grupo latino Menudo. Aos 17 anos deixou os Menudo e teve a melhor ideia que poderia ter tido: quis ir para Nova Iorque. Depois de algum tempo a viver no anonimato nos EUA, lançou em 1995 o seu terceiro álbum a solo, "A Medio Vivir". Nessa altura, foi convidado para o elenco de "Os Miseráveis", na Broadway, e entretanto foi a voz de Hercules na versão espanhola do filme da Walt Disney. Teve ainda tempo para ser Miguel na série "General Hospital" ("Hospital Central")."Living La Vida Loca", retirado do último álbum, tornou-se um megasucesso - esteve seis semanas em primeiro lugar no top norte-americano e também foi "top 1" em Inglaterra. "Ouvir o CD de Ricky Martin é como comprar uma bebida no cinema. Pedimos um copo pequeno, mas o empregado atrás do balcão diz-nos: 'O tamanho médio só custa mais um quarto de dólar'. Apercebemo-nos então que estamos mesmo com muita sede e pedimos esse. Mas o empregado continua: 'E se fosse o tamanho jumbo?' Vamos na conversa e acabamos por sair de lá com uma bebida gigante capaz de provocar uma inundação. Essa bebida é Ricky Martin. Ele atrai-nos com o seu carisma, com a sua energia transbordante e a sua voz suplicante, as emoções começam a surgir e, oops, acabamos com uma enorme taça de Ricky Martin nas mãos. Bebam tudo", escreveu Christopher John Farley na revista "Time" para explicar que o álbum até não é muito bom, mas não se lhe pode ficar indiferente. O lançamento definitivo ou a consagração final de Martin pode acontecer em 9 de Setembro, quando a MTV distribuir os seus prémios. Ele está nomeado em 12 categorias. Ganhe ou não, a cadeia de televisão norte-americana CBS gravará em exclusivo um concerto seu a realizar num teatro de Nova Iorque, em Novembro. A CBS pagou à cabeça a módica quantia de um milhão de dólares (cerca de 190 mil contos). O rapaz que vale milhões não está parado: assinou um contrato publicitário com a Pepsi no valor de 10 milhões de dólares. Jennifer Lopez tornou-se conhecida através de filmes como "Anaconda", "U-Turn" e "Out of Sight"("Romance Perigoso"). Já era razoavelmente conhecida quando interpretou o papel da falecida cantora texana Selena num filme sobre a vida deste ídolo da comunidade hispânica. Nas canções do filme usaram a voz original de Selena, mas durante a rodagem Jennifer descobriu que era capaz de cantar as músicas e foi isso que a levou a gravar um disco. Foi lançado este ano, fez com que ela fosse nomeada para os prémios MTV e o seu vídeo é um dos mais requisitados na estação de televisão. Jennifer Lopez, também de ascendência porto-riquenha, cresceu na América, em pleno Bronx. O seu álbum "On the 6" entrou logo nos tops. Chamou-lhe assim porque apanhava no Bronx o comboio da Linha Seis para ir assistir às aulas de dança em Manhattan. Uma das canções do álbum é um dueto com outro porto-riquenho, Marc Anthony (considerado um perfeccionista da salsa e com álbum em inglês aguardado em Setembro). Este é outro dos latinos que estão a arrasar na América. Atrelados ao sucesso de Martin e de Lopez e também a percorrer o caminho do "crossover" estão nomes como a rocker colombiana Shakira (que trabalha com Gloria Estefan na adaptação para inglês do CD "Dondé Están Los Ladrones?"), a quem já chamam a Alanis Morissette latina, ou o mexicano Luis Miguel, que tem colada a etiqueta de arrasa- corações. E, claro, o espanhol Enrique Iglesias, que acaba de assinar um contrato para seis discos com a Universal Music por 44 milhões de dólares - o maior negócio de sempre para alguém que canta em espanhol. Enrique também vai gravar um disco em inglês (mais um "crossover") e está a ter um tremendo êxito com a canção "Bailamos", da banda sonora do filme "Wild Wild West", que estreou a semana passada em Portugal. A nova coqueluche desta onda latina chama-se Christina Aguilera, tem 18 anos, e chegou esta semana ao primeiro lugar do top norte-americano com uma canção em inglês, "Genie in a Bottle". Desde o fim de Junho o single já vendeu meio milhão de cópias, o vídeo é o quarto mais pedido na MTV, e as perspectivas para o álbum, a lançar no dia 24, são as melhores. O pai de Aguilera é do Equador e a mãe norte-americana de ascêndencia irlandesa que estudou para ser tradutora de espanhol. Cresceu a ouvir os pais falar esta língua e diz que pensa fazer um disco em espanhol - "um álbum de salsa". É fã da Jennifer Lopez e acha que Enrique Iglesias é o "homem dos seus sonhos". Fez-se notar quando interpretou uma das canções do filme "Mulan", da Walt Disney. Mas a sua editora diz que quer lançá-la não por ter ascendência latina, mas pelas suas qualidades: "Ela é descendente de latinos, mas acho que representa milhões de crianças americanas - as que são de ascendência hispânica mas também as que não o são. Ela tem tudo para ser a próxima Barbra Streisand ou a Celine Dion, e para nós, é isso que realmente importa", afirmou Ron Fair, da editora RCA Records.A designação de música latina é vasta, com inúmeros ritmos e subritmos e outros tantos intérpretes, que vão desde o pimba mais pimba aos produtos com uma tremenda caução cultural. Caso dos "Buena Vista Social Club", "descobertos" em Cuba por Ry Cooder. O facto é que todos conhecem um êxito crescente.A verdade é que êxitos latinos sempre houve. Xavier Cugat (o rei da Rumba) fez sucesso em 1934 com "La Cucaracha"; seguiu-se "Abaniquito" de Tito Puente em 1949. O ano de "La Bamba", de Richie Valens, foi 1959. Dez anos depois o Woodstock rendeu-se a Santana com "Evil Ways" (esta semana Santana voltou aos tops com "Supernatural"). Em 1984, o cantor de charme Julio Iglesias chegou aos tops americanos com "To All the Girls I've Loved Before". E no ano seguinte foi a vez de Gloria Estefan conquistar os EUA a cantar em inglês a canção "Conga", com a banda Miami Sound Machine de que fazia parte também o cubano Emilio Estefan (hoje seu marido e produtor de algumas canções dos discos de Martin e de Lopez). Venderam mais de 70 milhões de discos em todo o mundo. Emilio Estefan, considerado o padrinho do que se passou a designar de Miami Sound (fusão de sons latinos com 'disco sound' cantado em inglês), fundou em 1995 a Crescent Moon, que assinou contratos por exemplo com o baixista cubano Cachao - o pai do Mambo - quando ninguém se interessava por ele. Actualmente a etiqueta Crescent Moon é distribuída pela Sony Music. O êxito latino de 1995 pertenceu a Selena ("Dreaming of You") e aos Los Del Rio com "La Macarena". E 99 é o ano de Ricky Martin. Tommy Mottola, presidente executivo da Sony Music, que lançou tanto Jennifer Lopez como Ricky Martin, não se cansa de dizer que não tem nenhuma bola de cristal, mas que o instinto lhe diz que os músicos latinos vão definitivamente deixar de ser algo marginal para se converterem em super-estrelas para um público de massas. Emilio Estefan disse à revista "Time": "Penso que o que aconteceu com a R&B na Motown está a acontecer agora com a música latina. É como se um gigante adormecido estivesse a acordar por todo o mundo. Nada disto poderia ter acontecido há 15 anos. A Gloria e a mim coube-nos atravessar o caminho mais difícil. Há doze anos, nem sequer me deixavam tocar congas nos meus discos. Mas agora as pessoas compram discos de Arturo Sandoval e dos Buena Vista Social Club. A geração mais jovem está a reagir à música latina."E quem é esta geração mais jovem? Aqueles que têm entre 20 e 30 anos, já nasceram nos Estados Unidos e, ao contrário dos pais, não se envergonham de ser latinos. Vivem entre dois mundos: falam fluentemente espanhol e inglês, ouvem música latina, comem hamburger com feijão e denominam-se "Generation Ñ"( conceito criado por Bill Teck, que cresceu em Miami, é filho de um cubano e uma americana e escreveu um manifesto latino no primeiro número da revista "Generation Ñ"). E vão deixar o tal legado Ñ. Resta saber se estes latinos vieram mesmo para ficar, ou se não passam de uma moda num Verão ameno em temperaturas, mas quente em ritmos.

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