A proposta inédita

Este livro de Calvino terá o valor único de nos mostrar a outra faceta dos grandes autores: o facto de serem também, inequivocamente, excelentes leitores.

Não serão precisos pretextos para se falar de Italo Calvino, mas a reedição das suas "Seis Propostas para o Próximo Milénio", incluindo o texto até agora inédito "Começar e Acabar", com tradução de José Colaço Barreiros, poderá significar um bom motivo para se regressar ao escritor italiano, talvez um dos maiores da contemporaneidade.Estas propostas (que no fundo correspondem a valores a prezar em literatura), escritas quinze anos antes do milénio que se aproxima, faziam parte de um ciclo de seis conferências, "Charles Eliot Notton Poetry Lectures", para a Universidade de Harvard. Calvino nunca chegou a concluir a sua sexta proposta dedicada à "Consistência", falecendo antes de a escrever, pelo que as seis propostas se ficaram sempre pelas cinco, e pela tentativa de adivinhar uma sexta, pela sugestão do título. O inédito agora publicado não vem dar conta dessa falta, já que não corresponde na sua exacta medida à sexta conferência, mas a uma "elaboração provisória mas completa da conferência inicial" que mais tarde seria posta de lado. Pensa-se no entanto que "grande parte do material estava destinado a confluir na sexta lição", conforme é explicado na nota de edição que antecede o inédito. Ironicamente, todas as propostas de Calvino não constituem tanto propostas de valores a serem seguidos, como o reconhecimento de traços literários específicos a manter em literatura. Acima de tudo, este livro, este conjunto inestimável de conferências, terá o valor único de nos mostrar a outra faceta dos grandes autores: o facto de serem também, inequivocamente, excelentes leitores. E é um percurso de leitura enredado nas encruzilhadas da literatura que estas conferências nos oferecem. Aliás como o outro livro de ensaios de Calvino, "Porquê Ler os Clássicos.". Ou se quisermos, como também não se deixa de sentir em algumas das suas obras mais significativas, "Se numa Noite de Inverno um Viajante", que se move numa busca de experimentar as mais variadas possibilidades de escrever um texto, e em que a questão da leitura permanece com problema central, ou em "Palomar", que internamente questiona a capacidade de ler, neste caso específico de ler o mundo, associado à consciência da dificuldade de ver (também de dizer) em todo o pormenor. E nada será mais interessante do que verificar, nos livros de Calvino, um notável cruzamento entre categorias literárias: o autor que se reverte em leitor, o texto que se revela leitura, e a literatura a implicar o ensaio, num constante auto-questionamento.Este último texto do livro, o inédito "Começar e Acabar" traça uma tipologia das possibilidades de "incipit" literários, passando por alguns começos marcantes da literatura universal. O início de um texto para Calvino, segundo este curto ensaio, além de significar um momento, difícil, de escolha, da opção perante a diversidade do leque das linguagens à disposição, "as elaboradas pela literatura, os estilos em que se exprimiram civilizações e indivíduos nos vários países e também as linguagens elaboradas pelas disciplinas mais variadas, com a finalidade de alcançar as mais diversas formas de conhecimento". Destas múltiplas hipóteses, caberá ao autor a árdua tarefa de seleccionar "a linguagem adequada para dizer o que queremos dizer", para concluir que se busca a linguagem que, acima de tudo, "é o que se quer dizer" (p. 149). Mas o início é importante por uma outra razão, por marcar um limite fundamental na literatura, o momento ténue da fronteira: "O início é um lugar literário por excelência porque o mundo lá de fora por definição é contínuo, não tem limites visíveis. Estudar as zonas de confins da obra literária é observar os modos como a operação literária implica reflexões que vão para além da literatura mas que só a literatura pode 'exprimir'" (p. 150).Apesar do irrecusável interesse deste texto que só corrobora a acuidade de Calvino para corresponder à difícil tarefa de falar sobre literatura, são os restantes ensaios, as cinco propostas, que continuam a provocar perplexidade, por uma capacidade de referência ao literário, sem a procura de chavões teóricos que imprimam aos textos pelo menos uma simulação de objectividade. Pelo contrário, estas categorias aparentemente subjectivas como a "Leveza", a "Rapidez", a "Exactidão", a "Visibilidade" ou a "Multiplicidade", descritas com um notável rigor argumentativo, fazem pensar tratar-se de facto de características indiscutivelmente associadas à literatura, descobrindo-se como valores intrínsecos às obras literárias. E é por isto que a máxima de Valery citada por Calvino na primeira das conferências "Deve-se ser leve como um pássaro e não como uma pena"(p. 30), nos parece evidente quando associada ao literário (ainda que o autor nos adverta igualmente dos prazeres da lentidão), assim como parecerá indiscutível a defesa da exactidão da linguagem, "os esforços das palavras para dar conta, com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas.

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