Coisas de usar e não deitar fora

A técnica dos computadores evolui com uma rapidez estonteante: o que há meia dúzia de meses era o último grito do progresso pode bem estar transformado, hoje, numa máquina obsoleta, não necessariamente a caminho do ferro-velho mas, ainda assim, bastante menos capaz (ou menos "performante", parece que é como se diz) do que os modelos mais recentes. Enquanto a coisa se resolve com algum "upgrade" (é, também é assim que se diz na gíria), tudo bem: compra-se uma placa nova, expande-se a memória, isto ou aquilo, e o velho caixote ganha uma nova força com a transfusão de peças. Mas quando é o próprio coração do aparelho que já não tem pedal para chegar aos calcanhares das máquinas de nova geração, o remédio é mesmo comprar novo. E que fazer então ao velho, que não é ainda inútil mas, aparentemente, já não consegue competir?Levante o braço quem não tem lá por casa, arrumada a um canto à espera de um destino sentimentalmente adiado, uma qualquer maquineta ou aparelho doméstico que se estragou mas que ainda não se teve coragem de deitar ao lixo... Eu, pela minha parte, confesso que tenho várias. Porquê? Porque me é difícil ultrapassar uma certa sensação de desperdício, de esbanjamento, de gasto perdulário, que significaria inutilizar em definitivo uma máquina de aspecto ainda razoável (embora avariada) mas inapelavelmente ultrapassada por outras mais evoluídas. Ou, pior ainda, uma máquina cuja reparação, por pequena que seja, já não compensa : é melhor esquecer e comprar nova, que pouco mais custa. Para já não falar na dificuldade que há, hoje em dia, em encontrar quem pura e simplesmente faça o conserto de tantas dessas maquinetas que nos povoam a casa e o escritório... E lá ficam então os aparelhos, abandonados, perdidos na garagem ou na arrecadação, e lá vão enferrujando, e lá se vão desfazendo, até que uma daquelas limpezas anuais lhes diz finalmente adeus, estão eles pura sucata. Mas já outros, ainda em bom estado embora com um probleminha, se lhes sucedem na prateleira das utilidades duvidosas. E assim sem parar.É, aliás, como as canetas (já quase só usamos esferográficas de usar e deitar fora, são tão práticas...) como os isqueiros (idem aspas), como os aparelhos de barbear, como as garrafas de vinho ou de cerveja, como os relógios, tanta tralha. Anda tudo muito descartável. E as exigências vertiginosas da moda, que obrigam a mudar as aparências das coisas mesmo que o miolo se mantenha rigorosamente o mesmo, dão o empurrão acrescido à "necessidade" de comprar o novo em vez de recuperar o usado.Daí que apeteça aplaudir uma experiência que vem sendo feita na Holanda há pouco mais de um ano e que já permitiu dotar as escolas do país de milhares e milhares de computadores. Um grupo de pessoas e instituições (entre as quais o Ministério da Educação, câmaras municipais, associações empresariais) criou uma fundação sem fins lucrativos, cujo trabalho consiste em receber computadores "ultrapassados" pelos modelos mais recentes, reciclá-los e distribuí-los, a preço quase simbólico, pelas escolas. A iniciativa partiu da constatação de que, cada vez mais, grandes empresas e entidades públicas se vêem obrigadas a actualizar o seu equipamento informático, substituindo dezenas ou centenas de velhas máquinas que acabam por parar no lixo ou no sótão das velharias. Então, por que não entregá-las a quem possa ainda descobrir-lhes uso? A tal fundação ocupa-se disso: recebe as máquinas, vê se estão dentro de mínimos aceitáveis, faz-lhes algumas actualizações e vende-as às escolas por qualquer coisa como 15 contos cada (incluindo, neste preço, a garantia, a instalação e a assistência técnica). Explicava há tempos o porta-voz da tal fundação: "Não temos a última geração [de computadores] mas estamos a oferecer máquinas com as quais se pode aprender muito bem. E garantimos o seu funcionamento pelo menos durante três anos".A quantidade de apoios e os números do "negócio" dizem bem do sucesso da iniciativa: há mais de 300 empresas privadas que aderiram à ideia e entregam os seus computadores quando os retiram de uso; todos os ministérios e entidades da administração pública fazem o mesmo; em ano e meio de experiência, já foram colocados nas escolas holandesas, por esta via, mais de 75 mil computadores. O que permite, imaginar-se-á, que estas maquininhas tão úteis existam nas salas de aula em quantidades tais que permitem a sua real utilização no processo de aprendizagem escolar, e não apenas para umas brincadeiras ou experiências internáuticas de intervalo. O exemplo, ao que leio, já frutificou e começa a expandir-se por acção da fundação holandesa: na Bélgica foram distribuídos há dias, em várias escolas, os primeiros mil computadores neste esquema; na Escócia e Inglaterra dão-se os primeiros passos; a Alemanha, a Itália e a Espanha estão na calha. Já agora, se Portugal se pusesse também na bicha...

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