O 25 de Abril dos padres

Chamavam-se "Tribuna Livre". Eram padres de vários pontos do país que, durante meses, abalaram o frágil equilíbrio em que se encontrava a Igreja Católica e não esconderam a sua oposição ao regime. Proibidos pelos bispos de se reunirem em Fátima, não desistiram, criticaram a colagem da hierarquia ao poder político e o medo que se vivia na sociedade e na instituição eclesiástica. Isto, dois anos depois de muitos deles terem assinado uma carta a propor quem devia substituir o cardeal Cerejeira como patriarca de Lisboa...

Há quase 30 anos, em Novembro de 1969, um grupo de 67 padres de cinco dioceses do país era forçado a procurar uma alternativa a Fátima para se poder reunir e pensar a sua missão numa sociedade em mudança. Perante a emergência, o então prior do Entroncamento resolveu bem o problema: "Telefonaram-me à última hora. Era difícil arranjar alojamentos mas, nas missas de domingo, fiz um apelo a quem estivesse disponível para receber colegas meus e contratei um restaurante em frente da estação para as refeições", recorda agora, ao PÚBLICO, Carlos Leonel Santos, editor na Multinova.Duas semanas antes, o cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira, então patriarca de Lisboa, tinha sabido da preparação do encontro e escrevera uma carta ao clero da sua diocese a contestar a "obra dissolvente" que o encontro significava (ver texto nestas páginas). O episcopado, entretanto reunido, manifestou-se também contra os padres "marginais". Acto contínuo, o bispo de Leiria proibiu todas as casas religiosas de Fátima de receber o grupo. Perante a interdição, os organizadores decidiram manter a convocatória, mudando de lugar e recorrendo ao salão paroquial do Entroncamento.Era um encontro com claro fundo político, admite Manuel Tiago Martins, 61 anos, então pároco de Tremez (Santarém) e hoje professor do ensino secundário em Queluz. "Mas o seu objectivo era fundamentalmente religioso. Pretendíamos reflectir sobre a nossa missão numa sociedade em mudança, na qual já se pressentia que era impossível aos padres continuarem a colaborar com a hierarquia [católica] ligada ao sistema." A realização do encontro não caía do céu, mas começara um ano antes: depois do Verão de 1968, um grupo de padres da diocese de Lisboa começou a encontrar-se mensalmente. Das conversas informais, para troca de ideias e de informação, rapidamente se passou à constituição do grupo "Tribuna Livre". Apoio mútuo, partilha de reflexões, troca de informação dos vários grupos de oposição católica ao regime eram alguns dos fins que o grupo se propunha. Rapidamente surgiu a ideia de alargar o debate a padres de outros pontos do país, através da realização de um encontro que debatesse a "rentabilidade" evangélica do seu trabalho como padres. O ano da criação do grupo, 1968, tinha sido fértil em acontecimentos na área do patriarcado de Lisboa: o Seminário dos Olivais vivera uma crise que levara à demissão colectiva dos seus responsáveis - entre os quais alguns da "Tribuna Livre"; o cardeal Cerejeira instaurara um processo ao padre José Felicidade Alves, então pároco de Belém; três padres, vestidos de batina, participaram numa manifestação contra a guerra no Vietname; e, no final do ano, uma vigília na Igreja de São Domingos atrevia-se a rezar pela paz e pelo fim da guerra em África, numa época em que o tema era tabu. Este último acontecimento deu origem, pouco depois, à publicação do "Boletim Anti-Colonial", liderado pelo arquitecto Nuno Teotónio Pereira e por Luís Moita, então padre na paróquia de Marvila, actualmente reitor da Universidade Autónoma de Lisboa. Foi precisamente em Marvila que o grupo se foi reunindo, numa capela da antiga Fábrica da Pólvora adstrita ao Exército. A PIDE, polícia política do Estado Novo, chegou a interromper duas reuniões e a levar alguns documentos - o que criou um atrito de alguma gravidade entre a polícia política e os responsáveis do Exército. Depois de uma dessas invasões, Luís Moita escreveu ao cardeal Cerejeira a pedir-lhe que interviesse. Sem resultados. Outra vez, foi no Entroncamento que a PIDE foi procurar exemplares dos "Cadernos Gedoc", publicação também ligada à oposição católica à ditadura. "A paróquia do Entroncamento era um ponto de distribuição do 'Gedoc', mas dessa vez escondemos os cadernos na coelheira e a PIDE não conseguiu encontrar", relembra Carlos Leonel Santos. A rede de padres servia para trocar informações e documentação, mas também para organizar campos de férias e falar em paróquias. "Tínhamos algum receio do que poderia acontecer, mas sentíamos a obrigação de investir nessas acções, porque éramos privilegiados, no sentido de que a própria PIDE hesitava, por vezes, sobre o que havia de fazer em relação ao nós", diz Manuel Tiago Martins. Apesar da importância que o grupo teve, não foi o único a surgir nessa altura. As iniciativas de oposição à ditadura e à guerra colonial multiplicavam-se pelo país e também no interior da Igreja. O boletim "Direito à Informação", a cooperativa Pragma, o "Boletim Anti-Colonial" eram apenas alguns exemplos do que se fazia entre diferentes grupos de católicos. Quando, em 1967, Luís Moita chegou a Lisboa, vindo de Roma, onde concluíra o seu doutoramento, integrou-se num grupo informal de católicos. "Alguém disse que já havia alguns 42 grupos de católicos, baptizámos o nosso como o C 43", conta o actual reitor universitário. Nesse grupo, estavam, entre padre e leigos, o bispo auxiliar do patriarcado, D. Manuel Falcão, que no final de 1967 seria "escolhido" por 106 padres da diocese para suceder ao cardeal Cerejeira (ver texto nestas páginas). Outro grupo de padres foi o CIDAC (Comunidade Inter-Diocesana para o Diálogo e Acção do Clero), criado em Setembro de 1969, dois meses antes do encontro do Entroncamento. O grupo, que envolvia alguns dos padres da "Tribuna Livre", constituiu-se para participar em assembleias europeias de clero, realizadas em Coire (Suíça) e Roma (Itália) por essa época. Uma outra rede, esta alargada a leigos e religiosas, mas completamente informal, era a dos "Terceiros Sábados", que se concretizou já no início da década de 70. A designação veio-lhe do facto de se reunir, aos terceiros sábados de cada mês, na casa das irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, na zona do Campo Pequeno (Lisboa). Mais do que um grupo, era uma possibilidade de encontro, à sombra de temas religiosos, para que as pessoas envolvidas em actividades clandestinas de oposição pudessem trocar informação - e no qual começou a aparecer uma nova geração de oposicionistas católicos, ligados por exemplo à JEC e à Capela do Rato. Na definição do dominicano Bento Domingues, era um espaço "onde ninguém sabia de ninguém e onde havia sempre mais coisas envolvidas do que cada um pensava". Acabou quando a PIDE foi à casa religiosa e proibiu as irmãs de continuarem a abrir a porta. Os "Terceiros Sábados" ainda reuniram no colégio das Dominicanas do Restelo, mas acabaram mesmo ao fim de mais três ou quatro meses. O carácter "flutuante e informal destas redes desorientava a PIDE", verifica Luís Moita. Nenhuma delas conseguiu fazer a revolução, é certo. Mas todas conseguiram, pelo menos, fazer uma "grande pressão" sobre a hierarquia católica e ajudar à pressão sobre o regime, como refere António Correia, outro dos envolvidos na "Tribuna Livre", então pároco de Palmela. Se as histórias têm que ter sempre uma moral, pode dizer-se que, nesta, às propostas de mudança e transformação sobrevieram as frustrações e o desencanto. E, poucos anos depois do Entroncamento, cerca de um terço dos padres do patriarcado ordenados no início da década de 60, tinham abandonado o exercício do ministério. A ruptura, afinal, consumara-se por outras vias.

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