Torne-se perito

Um referendo com outro nome

O contra-relógio continua, agora com a meta à vista e o percurso mais definido. Jacarta aceita uma consulta directa aos timorenses e não questiona o princípio do voto livre e secreto em sufrágio universal. Ou seja: Jacarta aceita um referendo, desde que ninguém use a palavra proibida para designar a consulta sobre o plano de autonomia em Timor-Leste. É certo que continua a haver perguntas sem respostas. Como é que se faz o recenseamento? Quando e como é que a ONU vai para o terreno? Quem explica o conteúdo do plano de autonomia à população timorense? Como é que se faz isso até às eleições indonésias? A pressão e o escrutínio internacionais são apontados como o melhor remédio para ultrapassar as dificuldades. Com o envolvimento decisivo das Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança terá que se pronunciar.

O acordo de princípio obtido na passada quinta-feira em Nova Iorque consagrou uma consulta directa ao conjunto da população timorense, que, através do voto livre e secreto num sufrágio universal organizado pelas Nações Unidas dirá se aceita ou rejeita o plano de autonomia cuja negociação deverá estar concluída até à última semana de Abril. Isto significa que a Indonésia, que sempre se opôs á realização de um referendo em Timor, acaba de aceitar isso mesmo: o mais puro referendo, desde que não se use esse nome para designar o modo de consulta acordado em Nova Iorque por Jaime Gama e Ali Alatas, sob os auspícios de Kofi Annan.Ficou assim ultrapassado o maior obstáculo político que até a esta última ronda de negociações continuava a perturbar uma solução definitiva para a resolução do problema timorense. Jacarta já tinha deixado claro que uma eventual rejeição da autonomia abriria as portas à independência do território. Mas a forma de aferir o sentimento dos timorenses em relação à autonomia continuava a suscitar dúvidas. O acordo da passada quinta-feira dissipa boa parte das interrogações. Mas há perguntas que continuam sem resposta e que certamente vão estar na mesa do secretário-geral da ONU quando os ministros português voltarem a Nova Iorque, no próximo dia 22 de Abril.A primeira diz respeito à forma prática como decorrerá a consulta. Ali Alatas falou em "inovação" e sugeriu que uma missão da ONU percorresse o território promovendo uma série de consultas locais sussessivas. Portugal continua a privilegiar a alternativa mais normal de uma consulta geral simultânea e a opção de Alatas parece ser mais uma acrobacia formal destinada a escamotear a identificação do processo com um referendo clássico.Outra dificuldade remanescente prende-se com o calendário. Sabendo-se que o plano de autonomia não ficará pronto antes de 22 de Abril e que convém submetê-lo aos timorenses antes das eleições indonésias de 7 de Junho, restam seis semanas para proceder à consulta. Durante esse mês e meio, é preciso que o acordo estabelecido entre as partes seja apresentado ao Conselho de Segurança da ONU. A organização da consulta - e o ministro português sublinhou que o entendimento recém-estabelecido com Ali Alatas prevê que as Nações Unidas organizem e não apenas supervisionem o processo - pressupõe uma operação cuja envergadura ultrapassa largamente o "poder geral de bons ofícios" do secretário-geral. O que significa que Kofi Annan não pode decidir sozinho e será preciso uma resolução do Conselho de Segurança sobre o assunto para dar corpo ao acordo entre as partes. A possibilidade de Timor-Leste poder vir a constituir um precioso caso de sucesso para uma ONU a que não têm faltado desaires poderá contribuir para que o Conselho de Segurança decida depressa. Se assim for, passa-se rapidamente para a etapa seguinte, que terá de incluir um período de esclarecimento dos timorenses sobre o conteúdo do plano de autonomia que serão chamados a votar. E nesse ponto, ninguém adianta soluções concretas para já. Quem é que vai explicar a substância do projecto de autonomia? Haverá uma campanha clássica? A ONU já estará no terreno nessa altura? Até ao próximo dia 22 de Abril, as Nações Unidas deverão apresentar a Lisboa e Jacarta propostas que respondam a esse tipo de perguntas. É também até à próxima ronda de negociações que se esperam decisões no delicado capítulo do recenseamento. Embora a definição do colégio eleitoral em Timor-Leste não apresente problemas tão complexos como aqueles que têm atrasado o referendo no Sara Ocidental (ver entrevista neste Destaque), o certo é que a identificação de timorenses e transmigrantes pode revelar-se complicada. E tomar tempo.A forte pressão internacional que favorece um desfecho democrático para a questão de Timor é o melhor argumento de quem espera ver estes problemas ultrapassados. É essa mesma pressão internacional que à partida inviabiliza soluções como a que determinou a integração de Irian Jaya na República na Indonésia, em 1969, através de uma consulta limitada a um grupo de chefes tradicionais. A perspectiva de uma solução internacionalmente aceitável a curto prazo deve ainda permitir que se "fechem os olhos" a uma ilegalidade formal inevitável no território ocupado pela Indonésia. Em rigor, a escolha deveria ser precedida por um regresso ao território de Portugal, que, na qualidade de potência administrante, promoveria a consulta. Mas como Lisboa encara o seu estatuto de potência administrante como um factor instrumental para que se chegue à autodeterminação, o que importa é que os timorenses escolham livremente o seu destino. O resto é secundário.

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