Pôr no sítio a história da Senhora de Nazaré

O culto à Virgem da Nazaré, no Sítio, assenta numa base histórica infundada: o milagre que, no século XII, teria evitado a queda de D. Fuas Roupinho no mar. A história foi criada por um frade cisterciense em 1600, o que ajudou a desenvolver o culto ali existente desde o século XIV. A coroa também ajudou à expansão e a Virgem da Nazaré acabou por desembarcar em Belém do Pará, no Brasil. Teses de uma obra editada na Universidade Católica.

O alegado milagre que, no final do século XII, teria beneficiado D. Fuas Roupinho no Sítio da Nazaré - quando uma invocação da Virgem o salvou de cair no desfiladeiro, sobre o mar - não tem fundamentação escrita e só no século XVII haverá registo da intervenção sobrenatural. Tão-pouco existiria santuário no século XII, quando se teria verificado aquele acontecimento. O culto à Virgem da Nazaré data apenas do século XIV. Mas, entretanto, a sua expansão teve os favores da coroa e chegou mesmo ao Brasil, onde deu origem a uma das maiores festas do país e à mais importante festividade de Belém do Pará - o Círio (ver caixa). O historiador Pedro Penteado, 33 anos, investigou a história do santuário e o resultado desse trabalho está agora sintetizado no livro "Peregrinos da Memória - O Santuário de Nossa Senhora de Nazaré 1600-1785" (ed. Centro de Estudos de História Religiosa, da Universidade Católica). E não tem dúvidas: foi frei Bernardo de Brito que, à volta de 1600, mudou o curso da vida do santuário ao pôr por escrito a história do milagre. "A personagem de D. Fuas Roupinho existe, mas não há documentos a falar do milagre", diz ao PÚBLICO. O que o monge fez foi "pegar na personagem e associá-la ao lugar". Pior ainda: a doação que, segundo frei Bernardo, D. Fuas fizera dos terrenos onde se localizava a ermida acabou por os retirar dos domínios dos coutos do Mosteiro de Alcobaça, transferindo-os para a administração da Confraria da Nazaré. A história mudou quando frei Bernardo de Brito mandou desentulhar a gruta subterrânea que existia na Ermida da Memória. De seguida, escreveu um letreiro onde contava que o monge Romano teria levado a imagem para o Sítio, na época da conquista da Península pelos exércitos árabes. Ali ficou a Senhora escondida entre "entre (...) dois escabrosos penedos", durante 469 anos bem medidos, até ser achada por D. Fuas Roupinho, no ano de 1182, "como ele próprio testifica em sua doação". Depois do achamento, D. Fuas foi protagonista do milagre, sempre segundo a versão de frei Bernardo de Brito. A descrição feita pelo cisterciense em 1609, na "Monarchia Lusitana", conta deste modo a intervenção da Virgem: "(...) sucedeu darem os sabujos com um veado (se porventura o era) e arremessando dom Fuas o cavalo em seu alcance, sem temor de perigo, por cuidar que era tudo campo igual, e a névoa lhe não deixar ver por onde ia, se achou na última ponta do rochedo, que com mais de duzentas braças se deixa cair ao mar, a tempo, que não foi em sua mão ter as rédeas ao ginete, nem houve lugar para mais, que chamar o socorro da Virgem Maria, cuja imagem ali estava, e valeu-lhe ela de modo, que menos de dois palmos do fim da rocha, em uma ponta que faz estreita, e muito comprida, lhe parou o cavalo, como se fora de pedra." Com o letreiro e a história escrita por Bernardo de Brito, ficou preparado o terreno para a transformação da ermida num santuário. Pedro Penteado nota, no livro, que é difícil saber se haveria alguma narrativa oral, anterior, sobre as origens da imagem. Mas, acrescenta, "até ao aparecimento do relato daquele cronista monástico, nunca a imagem da Senhora de Nazaré esteve publicamente relacionada com o milagre do cavaleiro". É de crer, aliás, que a imagem fosse vista "apenas como a pequena Virgem do Leite, que aconchegava o seu filho junto ao peito esquerdo". A posse das terras não foi assunto pacífico. O Mosteiro de Alcobaça nunca aceitou que a Confraria da Senhora de Nazaré se tivesse apropriado dos terrenos e do santuário - ainda por cima, tendo em conta a responsabilidade, no facto, de um monge do próprio mosteiro. Em 1786, a abadia atravessava um período de graves dificuldades e a contestação à história de frei Bernardo de Brito tornou-se mais dura. Frei Manuel de Figueiredo publicou então um texto histórico-crítico a contestar a versão do antigo colega. Como é que D. Fuas poderia ter doado as terras do santuário à Senhora de Nazaré se anteriormente o rei D. Afonso Henriques as tinha doado ao mosteiro? Em 1793-94, frei Joaquim de Santo Agostinho punha em causa a veracidade dos documentos escritos por Bernardo de Brito. E em 1798 era frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo que caracterizava como fábula a doação dos terrenos à confraria. A resposta da confraria a estes argumentos era, explica o historiador, a promoção da devoção à Senhora de Nazaré. Para isso, multiplicavam-se as estampas, medalhas, livrinhos e loas à Senhora ou à história do santuário. O certo é que, nesta pequena batalha, foi a devoção que ganhou. Ajudada pela coroa, que passou a apoiar directamente a confraria do santuário (sabe-se que o rei D. João II, por exemplo, esteve no Sítio), e pelo clero local, que a partir de 1630 passou a intervir cada vez mais no culto da Senhora de Nazaré. As promessas das pessoas, diz Pedro Penteado, desviaram-se então para os aspectos penitenciais: redobrou a procura das indulgências, tal como a do confessionário. A origem dos peregrinos que buscavam o santuário era diversa. Em termos geográficos, havia muita gente do meio rural, mas também de Lisboa, Coimbra ou Óbidos. E, nesse tempo, fazer uma peregrinação à Nazaré, a partir de Lisboa, implicava uns oito ou nove dias: três dias de viagem para cada lado, mais a estada no santuário. Também ao nível socioeconómico havia "pessoas de todos os estratos sociais, desde a aristocracia local até aos escravos, trabalhadores do campo", gente com algumas posses e pequena burguesia. E também mestres e pilotos de naus, comerciantes ou artesãos. A todos estes, unia-os um factor comum: eram as doenças ou os acidentes a motivação principal da demanda do santuário, em pedido ou agradecimento. Pedro Penteado estudou os registos das intervenções milagrosas entre 1600 e 1637, para concluir que 62,8 por cento eram devidos a doença ou acidente. Para quem pensasse que os desastres marítimos eram a razão mais forte, os registos dizem o contrário: só 20,4 por cento dos casos têm uma motivação de naufrágio. Nas peregrinações, assumiam um papel especial as confrarias, que tinham o objectivo de promover o culto associado à romagem e que tomaram o nome de círios (dos quais subsistem três, em Santo Isidoro - Mafra -, Penela e Olhalvo). E foi pela designação de Círio que passou a ser conhecida, no Brasil, a festa dedicada à Senhora de Nazaré.

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