Homens que mudaram a Pérsia

Em 1953, com o Xá da Pérsia refugiado num hotel de Roma e sem saber de nada, a CIA derrubou o seu primeiro-ministro, Mohamed Mossadegh. A prisão do herói laico que enfrentou as potências ocidentais e nacionalizou o petróleo abriu o caminho para o Ayatollah Khomeini lançar a sua revolução contra o império dos Pahlavi e o imperialismo americano.

·Mohamed MossadeghEntre 1951 e 1953, uma figura carismática ergueu-se do parlamento iraniano para conduzir o país numa revolta contra a subjugação nacional e a monarquia absoluta. Chamava-se Mohamed Mossadegh e tinha 69 anos quando, deputado do Majlis, decidiu enfrentar a poderosa Anglo-Iranian Oil Company (AIOC). Um homem calvo com um enorme pescoço e um nariz aquilino, era visto até mesmo entre os seus apoiantes como uma espécie de "abutre". E como um abutre agarrou-se à política iraniana durante décadas, esperando devorar os que sacrificavam os interesses do Irão.Na hierarquia da dinastia que precedeu os Pahlavi, Mossadegh era um aristocrata, filho de um alto funcionário público e de uma bisneta do rei Qajar Fath Ali Xá. A proeminência da família permitiu-lhe ser nomeado, aos 15 anos, responsável pelas finanças da grande e rica província de Khorasan. Aos 27 anos, em 1909, escalou as montanhas de Alborz, navegou pelo Cáspio e viajou de comboio até Paris para conhecer o Ocidente. Formou-se em Direito na Suíça e publicou uma tese em que confluiam a tradição xiita, o direito constitucional ocidental e o nacionalismo iraniano.De volta ao Irão serviu em vários governos até ser eleito para o quinto Majlis. Em 1925, foi um dos raros deputados que se opôs à criação da dinastia Pahlavi, e Reza Xá fê-lo pagar o preço da dissidência. Afastado da vida pública e periodicamente preso, Mossadegh refugiou-se na sua propriedade em Ahmadabad, não longe de Teerão.Quando Reza Xá abdicou em 1941, Mossadegh emergiu como um herói popular. E assim reentrou, em 1944, no parlamento. Aqui juntou uma coligação de vários partidos, excepto os comunistas do Tudeh, que não partilhavam a sua ideologia nacionalista.No centro da coligação de Mossadegh estava a Frente Nacional criada no final dos anos 40, cujos membros provinham, na maioria, da classe média educada no Ocidente. A agenda colectiva destes "verdadeiros constitucionalistas" exigia um Xá que reinasse e não governasse, liberdade de imprensa, eleições livres, poder dos civis sobre os militares e, acima de tudo, libertação do jugo britânico.Em 1951, todos os laicos, e até os "mullahs" xiitas de Qom, se juntaram a Mossadegh na escaldante questão do petróleo. Em 15 de Março, sob recomendação de Mossadegh, o Majlis aprovou a nacionalização da AIOC, fazendo do Irão o primeiro país do Terceiro Mundo a desafiar os interesses económicos de uma potência ocidental. No dia 29 de Abril, o mesmo Majlis elegeu Mossadegh primeiro-ministro. Em 1951, cego pela adulação do povo, Mossadegh subestimou os inimigos. Não contava com um boicote da AIOC ao petróleo iraniano nos mercados internacionais. A estagnação económica instalou-se e o entusiasmo popular transformou-se em desespero. Mossadegh fez então o que os reis iranianos faziam desde o século XIX: recorreu a uma terceira potência, neste caso os Estados Unidos, para neutralizar a Grã-Bretanha, e ofereceu a si próprio "poderes especiais". Nada disto resultou e, em Maio de 1953, Mossadegh estava cercado. O Bazar, o Exército e a sua coligação abandonaram-no. A monarquia estava de rastos e o Tudeh tornara-se dono da rua. Em 13 de Agosto, o Xá mandou um coronel informar Mossadegh de que tinha sido demitido, mas o primeiro-ministro prendeu o mensageiro. O rei fugiu para o Iraque e depois para Itália. Em Teerão, ficou Kermit Roosevelt, o chefe de operações da CIA, a preparar a "Operação Ajax". Em 18 de Agosto, reagindo à manipulação dos espiões americanos e britânicos que espalharam o medo de um governo comunista, o Exército iraniano saiu dos quartéis para, em nome do Xá, reprimir as manifestações pró-Mossadegh. Pelo menos 300 pessoas morreram. O primeiro-ministro foi preso.No Hotel Excelsior em Roma, o Xá não sabia de nada até um repórter da Associated Press lhe passar um telex: "Mossadegh derrubado; tropas imperiais controlam Teerão". O rei desabafou: "Eu sabia que eles gostavam de mim!"De regresso ao palácio, o Xá ordenou o julgamento público de Mossadegh, que em tribunal teve uma das mais brilhantes actuações da sua carreira, apresentando-se como um mártir da soberania iraniana. Condenado pela corte do rei, esteve três anos na prisão até se refugiar em Ahmadabad. Nunca mais saiu de casa nem recebeu visitas. Morreu em 1967, aos 85 anos, com uma úlcera no estômago. Ainda hoje o profundo ressentimento que os iranianos nutrem pelos EUA se deve ao papel que a CIA desempenhou na queda de Mossadegh. Afastado o mais popular laico nacionalista, foi fácil ao Ayatollah Khomeini desencadear um movimento contra o império dos Pahlavi e o imperialismo americano.·Ruhollah Mussawi KhomeiniO colapso do governo de Mossadegh deixou o centro político mergulhado na confusão e na dúvida. E só a religião provou ser capaz de dirigir as massas. Foi a Revolução Branca do "rei dos reis" que, em 1963, o colocou em rota de colisão com os guardiões do xiismo. A tentativa de transformar a sociedade, através da reorganização do governo, privatização de empresas, emancipação das mulheres e, acima de tudo, da reforma agrária, foi entendida pelo clero como uma ameaça. No entanto, se houve "mullahs" que se rebelaram contra o programa do Xá, outros optaram pelo silêncio, para salvar tradições e privilégios. Nessa altura, em vez de procurar um compromisso, o rei preferiu explorar as divisões. Na cidade santa de Qom, deixou claro que só os que guardavam silêncio eram "verdadeiros líderes religiosos". Os que se levantavam contra a Revolução Branca não passavam de "negros reaccionários semelhantes a animais impuros".Um dos "reaccionários" era um Ayatollah nascido em 1902. A sua linhagem religiosa deu-lhe o primeiro nome de Ruhollah, que quer dizer "Alma de Deus". A sua terra-natal, Khomein, deu-lhe o apelido de Khomeini. A sua descendência do Profeta Maomé deu-lhe um turbante negro. Khomeini tornou-se "mullah" no ano em que Reza Xá ascendeu ao trono em 1926; era professor nas "madaris" ou escolas islâmicas de Qom quando o primeiro Pahlavi abdicou em 1941; e escreveu uma das suas mais importantes obras teológicas (Segredos Revelados) quando o exilado rei morreu em 1944.Inicialmente, apesar de discordar da ocidentalização do país, Khomeini aceitava a monarquia como uma forma de governo legítima assente na tradição iraniana. Mas tornou-se um feroz inimigo do Xá assim que este lançou a Revolução Branca. Apontando o dedo à anunciada distribuição de terras dos latifundiários religiosos a camponeses e ao fim da segregação dos sexos, Khomeini acusou o rei de estar a dar o golpe final no xiismo.Em 4 de Junho de 1963, Khomeini foi preso depois de um discurso subversivo. No dia seguinte, as paredes de Teerão encheram-se com os retratos do Ayatollah e as ruas tornam-se um campo de batalha com milhares de manifestantes, aos gritos de "Abaixo o Xá", a incendiar viaturas, a saquear lojas, a destruir edifícios públicos e a matar com um prazer sádico. Em Novembro de 1964, Khomeini foi colocado à força num avião que o deixou na Turquia. Ancara convenceu depois Bagdad a dar-lhe asilo. E foi no santuário de Najaf, no sul do Iraque, que Khomeini lançou as bases do Velayit-e Faqhi, ou governo do jurista - o mais revolucionário documento do xiismo - quebrando a velha regra de que todo o poder é profano até à vinda do Décimo Segundo Imã.Com Khomeini no exílio, nenhum religioso teve coragem de desafiar o trono, e o Xá voltou a reprimir o clero, obliterando cada vez mais a alma islâmica do Irão. As extravagantes festividades de glorificação do "rei dos reis" em Persepólis, em 1971 - até as pastilhas de Alka-Seltzer servidas aos convidados estavam envoltas em folhas de ouro -, só contribuíram para consumar a ruptura com o povo. Os "mullahs" xiitas organizaram-se então em redes clandestinas de oposição ao monarca. Em 1978, as cassetes com as prédicas de Khomeini, entretanto exilado próximo da casa de Brigitte Bardot em França, já tinham invadido o Irão. O Bazar, que perdera o monopólio das importações com a modernização do Xá, financiava os "mullahs". O Exército sofria uma média de mil desertores por dia. Em 1979, com o país banhado em sangue, o rei apercebeu-se de que não sobreviveria politicamente. No dia 16 de Janeiro, disse adeus aos Imortais, o seu corpo de guarda-costas, e partiu para o Cairo, onde morreria de cancro no ano seguinte. Em 1 de Fevereiro, Khomeini aterrou em Teerão. Três milhões de fiéis aclamaram-no. Moderados, conservadores e até a extrema-esquerda uniram-se num dia de sonho que rapidamente se tornou um pesadelo. Em breve começariam as prisões arbitrárias, as execuções sumárias, os atentados bombistas e uma guerra de oito anos com o Iraque. O Ayatollah provou que podia ser tão cruel e déspota como o Rei da Pérsia.

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