Reforma do ensino superior fica comprometida, se não houver aumento do investimento

Novo modelo de financiamento poderá limitar-se a redistribuir verbas, mantendo o fosso entre instituições, avisam especialistas. Governo reconhece que a fórmula ainda será afinada.

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Modelo de acesso ao superior está ultrapassado, mas, para já, mantém-se Fernando Veludo/NFactos

É a grande novidade da reforma do ensino superior cujas linhas gerais foram apresentadas pelo Governo esta semana: o financiamento das universidades e politécnicos vai ter uma nova fórmula, que passará a premiar as instituições pela qualidade da formação dos alunos ou pela transferência de conhecimento para o tecido económico ou cultural. Mas as consequências pretendidas podem ficar comprometidas se não houver um aumento do investimento público no sector.

O aviso é feito por especialistas em políticas de Educação, que alertam que, de outra forma, os novos critérios vão apenas redistribuir o orçamento dos últimos anos, mantendo o fosso entre as instituições. A tutela admite que o modelo ainda está em aberto.

“Para que a fórmula baseada no desempenho tenha efeito, é preciso que haja dinheiro”, avalia o investigador do Centro de Investigação em Políticas do Ensino Superior (CIPES), Pedro Teixeira. Sem um aumento das dotações para o sector que permita fazer dos novos critérios um “prémio” para as instituições com bons resultados, a mudança do sistema de financiamento será apenas “uma medida simbólica”, defende também Paulo Peixoto, do Observatório das Políticas de Educação (OPE).

Neste momento, na hora de definir as transferências do Estado para os orçamentos das instituições é tido em conta sobretudo o número de alunos, uma estratégia intimamente ligada com a política de numerus clausus. Essa opção contribuiu para as enormes diferenças de orçamento entre as maiores universidades públicas (Lisboa, com 304 milhões de euros anuais, e Porto, com 193 milhões) e as mais pequenas (o Instituto Politécnico de Portalegre gere apenas 11 milhões de euros por ano, e o do Cávado e Ave 8,5).

Para Pedro Teixeira do CIPES, sem um aumento de investimento público no sector, a nova fórmula de financiamento “vai apenas redistribuir dinheiro de uns para os outros”. O perigo dessa opção é a manutenção das assimetrias entre as instituições. As maiores são as que têm mais alunos, mas também melhores resultados nos rankings internacionais de produção científica, por exemplo, e maior capacidade de investigação e de ligação com empresas. “ Vão sofrer os mais frágeis, que são quase sempre os mesmos e são os que já estão em situações mais difíceis", antecipa.

No documento com as linhas gerais da reforma entregue às universidades e politécnicos na última quarta-feira, o Ministério da Educação e Ciência prevê introduzir na fórmula de cálculo variáveis como “valor acrescentado” dos graduados de cada instituição, a produção de conhecimento avaliada pela “contribuição para o conhecimento da humanidade” e para “a resposta aos desafios da sociedade portuguesa” e a transferência de conhecimento no campo cultural, artístico, social e económico, bem como o seu contributo para o desenvolvimento regional. Por último, a tutela pretende premiar as instituições que demonstrarem esforço para melhoria da gestão.

Os princípios estão “genericamente bem definidos”, avalia Pedro Teixeira, dada a diversidade de critérios que valoriza a produção científica. “O problema é pôr isto em prática”. Este especialista em economia do ensino superior questiona, sobretudo, “com que dinheiro” pode ser feita esta reforma. Nos últimos três anos, as transferências do Estado para o ensino superior sofreram cortes de mais de 260 milhões de euros, e a verba actualmente disponível “não chega para que o sistema funcione com o mínimo de normalidade”, diz.

Paulo Peixoto, do OPE, também acredita que a intenção do Governo “vai ser de muito difícil concretização”. A medida poderá incentivar as universidades para um caminho que não seja apenas a expansão do sistema, mas o investigador ligado à Universidade de Coimbra não acredita que os novos critérios possam “fazer alguma coisa de diferente do que as universidades já fazem”, lembrando que a produtividade científica ou o número de patentes já são tidos em conta na avaliação interna dos docentes.  “As boas reformas nunca foram feitas em contextos de penúria ou austeridade”, lembra, adicionando uma outra dúvida à forma como será aplicada a nova fórmula de financiamento: “Como se medem estes critérios?”

O Governo também ainda não sabe responder. “Vamos criar um grupo de trabalho com as universidades e institutos politécnicos para colaborar na criação dos indicadores considerados mais relevantes no quadro da proposta feita”, avança ao PÚBLICO o gabinete de comunicação do MEC. A proposta apresentada esta semana está em fase de discussão com as instituições até ao final do mês, esperando dar origem a “orientações firmas” antes do Verão, mantendo a intenção de que o próximo Orçamento de Estado seja preparado tendo em conta já esta nova realidade. A tutela mostra-se, porém, consciente de “haverá muito trabalho adicional de refinamento a desenvolver mais tarde”.

Para já nenhuma hipótese está afastada. Nem mesmo a ideia avançada pelo estudo da Associação Europeia de Universidade, a pedido do Conselho de Reitores, apresentado no início do ano passado (ver texto ao lado), que previa a criação de linhas de financiamento separadas para os subsistemas universitário e politécnico. Agora “apenas foram propostos os princípios base de um modelo de financiamento a construir. Este e outros problemas serão avaliados em conjunto com as instituições nas próximas semanas”, assegura a mesma fonte governamental.

Modelo de acesso está “esgotado” 
Nos últimos o modelo de financiamento baseado sobretudo no número de alunos era a outra face de uma moeda onde, do outro lado, estava a política de numerus clausus, destinada a controlar o acesso ao ensino superior num momento em que a procura aumentava. O modelo “fazia sentido num momento de expansão do sistema”, avalia Pedro Teixeira, do CIPES. Hoje “está esgotado”, defende Paulo Peixoto, do OPE.

Pedro Teixeira era o elemento português da equipa da Associação Europeia de Universidades que estudou o sistema de ensino superior e que recomendou o fim da limitação do número de alunos em cada curso. Os numerus clausus “enfraquecem a capacidade de as instituições tomarem decisões relevantes a nível regional numa estratégia de longo prazo”, lia-se no documento.

A proposta para a reforma do ensino superior apresentada agora pelo Governo não mexe, porém no sistema de acesso às universidades e politécnicos. Para o próximo ano, a única alteração à política de definição de vagas é o facto de as instituições de ensino superior não poderem abrir novos cursos quando existam formações em áreas idênticas dentro da mesma região. O MEC quer também impedir que universidades ou politécnicos possam criar novas ofertas fora das áreas da “vocação específica” de cada subsistema.

As restantes regras são semelhantes às dos últimos anos, com a obrigatoriedade de o total de vagas de cada instituição não poder ultrapassar o número definido no ano anterior, bem como o fim de cursos que nos últimos dois anos tenham tido menos de 10 inscritos e a necessidade de serem levadas em conta as informações relativas ao emprego dos diplomados de cada curso, tendo como ponto de partida o número de inscritos no IEFP.

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