Educação para o quê?... A integração escolar de crianças ciganas

Integração emancipatória e discriminação positiva não passam pela separação socio-espacial ou pelo abaixamento do nível de exigência académico.

1. No dia passado dia 18 o PÚBLICO noticiava a criação, na Escola Básica do 1º Ciclo dos Templários, Tomar, a construção de uma turma constituída apenas por crianças ciganas com idades entre os 7 e os 14 anos. Esta agregação de crianças ciganas numa mesma turma foi explicada ao Público pelo Director do Agrupamento como uma forma de “tentar precisamente que eles progridam e não fiquem a marcar passo, como tem acontecido em anos anteriores”, negando qualquer intenção discriminatória.

A constituição de turmas desta natureza não é um fenómeno novo, nem um problema local. Ele é, de facto, um problema nacional, contagioso pela naturalização do próprio processo a que parece estar a assistir-se, naturalizando as desigualdades. Argumentos como: “são crianças com necessidades educativas especiais” “não apresentam as competências cognitivas para a idade” (frequentemente “diagnosticadas” após a aplicação de testes de QI alheios ao mundo socio-cultural destas crianças), “apresentam dificuldade de adaptação às turmas regulares”, são parte integrante deste problema social. As intenções das professoras e dos professores são (aparentemente) boas, o absentismo escolar diminui, mas a realidade permanece imutável: segregação socio-espacial e sucesso do certificado e não das aprendizagens.

2. A Lei nº 134/99 de 28 de Agosto “Proíbe as discriminações no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica”, considerando práticas discriminatórias “as acções ou omissões que, em razão da pertença de qualquer pessoa a determinada raça, cor, nacionalidade ou origem étnica, violem o princípio da igualdade, designadamente: i) A constituição de turmas ou a adopção de outras medidas de organização interna nos estabelecimentos de ensino público ou privado, segundo critérios de discriminação racial, salvo se tais critérios forem justificados pelos objectivos referidos no nº 2 do artigo 3.º” (artigo 4.º, ponto 1). No referido número 2 do artigo 3.º pode ler-se que “O disposto na presente lei não prejudica a vigência e aplicação das disposições de natureza legislativa, regulamentar ou administrativa, que beneficiem certos grupos desfavorecidos com o objectivo de garantir o exercício, em condições de igualdade, dos direitos nele referidos”. Parecendo conter em si uma discriminação positiva, o articulado supracitado pode, no entanto, sob a capa da discriminação positiva, negar a igualdade de oportunidades presentes na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Bases do Sistema Educativo. Sendo aquela Lei de 1999, o Despacho nº 5048-B/2013 do Ministério da Educação e Ciência, no que à formação de turmas diz respeito, refere que “Na constituição das turmas deve ser respeitada a heterogeneidade das crianças e jovens, podendo, no entanto, o director, perante situações pertinentes, e após ouvir o conselho pedagógico, atender a outros critérios que sejam determinantes para a promoção do sucesso e o combate ao abandono escolares” (artigo 17.º, ponto 2). Não é, no entanto, explicitado, o que se entende por “sucesso” ou por “combate ao abandono”.

Do conhecimento de terreno que possuo, quando turmas desta natureza são criadas (e não me refiro aqui às turmas designadas de “PIEF” porque são um problema de natureza parcialmente diferente), é elaborado um Percurso Curricular Alternativo (PCA), de reduzida exigência académica face ao currículo-padrão, negando a igualdade de oportunidades no que ao acesso ao conhecimento escolar diz respeito. Importa, por isso, entre outras questões, interrogar o tipo de “integração” escolar e social que esta escolarização potencia e o tipo de “discriminação” que lhe está efectivamente subjacente.

3. Frequentemente utilizada como sinónimo de “assimilação” (tornar-se semelhante ao ‘outro’), integração significa fazer parte de um todo, participar nas diversas esferas da vida social enquanto cidadão/cidadã de pleno direito, em termos civis, políticos, sociais, culturais. Significa um processo de interacção horizontal e recíproco entre diferentes grupos socio-culturais; não um processo unilateral e subordinado. Significa dialogar com o ‘outro’, parte integrante neste processo, não definindo paternalística e arrogantemente o que é melhor para esse ‘outro’, relegado para um estatuto de menoridade. Em termos escolares, significa ter sucesso numa base de participação com igualdade; não sucessos desiguais, periféricos, hierarquizados.

Em situações desta natureza, as crianças e jovens ciganos não fazem parte de; estão à parte de. A discriminação que lhe está, por norma, subjacente, é uma discriminação negativa: o “problema” da escola passa a ser o problema da “turma”, ficando todas as outras turmas “normais”, sendo que, por definição e oposição, “aquela” turma será uma turma “anormal” não no seu sentido semântico (anormal é o que difere da norma) mas no seu sentido negativo (como o que “fere” a norma).

4. Discriminação positiva significa proporcionar às minorias (entendidas como grupos destituídos de poder) oportunidades de vida que, por serem minorias, lhes estão à partida subtilmente vedadas. Significa partilha de poder. Discriminar positivamente significa desenvolver uma acção conjunta que vá no sentido de possibilitar o esbatimento de desigualdades sociais reforçadas por características fenotípicas ou culturais, de aumentar as probabilidades de acesso a oportunidades de vida diversificadas, de mobilidade social ascendente, de emancipação social. Significa desenvolver um trabalho que vá no sentido de uma integração emancipatória.

Importa, por isso, ter em atenção que uma acção não é de discriminação positiva apenas porque assim é designada, mas porque é efectiva nos seus resultados.

Integração emancipatória e discriminação positiva não passam pela separação socio-espacial ou pelo abaixamento do nível de exigência académico. Trabalhar neste sentido significa deixar as crianças e os jovens ciganos (ou outros) no lugar em que estão: negar a interacção socio-cultural significa fechar os grupos numa diferença que não se conhece, que não potencia a compreensão e o diálogo socio-cultural; negar-lhes a possibilidade de acesso ao conhecimento socialmente válido significa negar o acesso a diversificadas oportunidades na vida.

É esta dupla negação que está presente na segregação socio-espacial e nas adaptações curriculares (quando estas deixam de ser a excepção para se tornar uma regularidade), a pretexto de uma intencionalidade dos profissionais (mesmo que genuína, mas social e sociologicamente ingénua) de exercício de uma discriminação positiva que não é positiva nos seus efeitos e que funciona, importa não esquecer, com o consentimento de quem tutela as escolas.

Pensar a Escola enquanto lugar de vida e não apenas de passagem para a vida significa possibilitar aos alunos o acesso ao conhecimento produzido nas diferentes Ciências e apreendido nas escolas e a aprendizagem da cidadania democrática e crítica. Isto implica um projecto educativo voltado para a construção e interiorização dos Direitos Humanos e do pensamento crítico, bem como práticas pedagógicas que permitam conciliar, sempre que considerado importante e necessário, a pertença de origem dos alunos e das alunas e o lugar onde se pretende chegar, sendo fundamental que a escola possibilite o diálogo, a articulação entre pertenças e emergências, que é o mesmo que dizer entre o que fui/sou – quero ser/construir, compreendendo a pessoa que habita os alunos. E perceber, neste processo, a importância do acesso ao conhecimento académico e da construção de uma cidadania crítica. É este o trabalho das escolas com os vários mundos que as habitam.

Professora Universitária, Coordenadora do Núcleo de Educação para os Direitos Humanos da Universidade do Minho, Membro do Núcleo fundador do Manifesto para um Mundo Melhor – Manifesto Internacional de Cientistas Sociais

mjcasanova@ie.uminho.pt

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