É possível legalmente um médico conduzir com excesso de velocidade ?

A dra. Joana tinha de observar com urgência uma sua paciente...

Joana, médica obstetra-ginecologista, foi apanhada pela Brigada de Trânsito a conduzir à velocidade de 133km/h sendo o limite máximo permitido no local de 80km/h

Em tribunal defendeu que não devia ser condenada porque, naquele dia e hora, deslocava-se da Covilhã para um hospital em Matosinhos, na sequência de uma chamada telefónica do hospital a solicitar a sua comparência com urgência para observar uma paciente que se mostrava indisposta e havia sido por si intervencionada cirurgicamente no dia anterior; chamavam-na para despiste de possíveis anomalias relacionadas com o pós-operatório e  encaminhamento para os serviços competentes de urgência, se necessário.

Para Joana, existiam obrigações profissionais e éticas que a tinham obrigado a incumprir os limites de velocidade fixados para o troço no qual fora apanhada a transgredir, mas, como sublinhou, “sempre sem perder de vista que o bem último (saúde e vida de uma paciente) se sobrepõem às questões de limites de velocidade rodoviárias”. Na verdade, dizia, se não tivesse agido como agiu, poderia cometer um crime de omissão de auxílio ou ser arguida num processo disciplinar por falta de cuidados para com uma sua paciente.

Mas o tribunal, que não deixou de constatar que a Joana tinha averbado no seu registo de condutor duas condenações anteriores respeitantes à condução a velocidade superior à legalmente permitida, não aderiu à versão da médica obstetra-ginecologista e condenou-a pelo excesso de velocidade.

Joana recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra na esperança que este aceitasse que tinha agido ao abrigo da lei, já que atuara em verdadeiro estado de necessidade desculpante.

Em seu apoio, lembrou a Joana que o Tribunal de Relação de Guimarães em 2015 tinha absolvido um cidadão que tinha atendido o telemóvel quando conduzia a sua viatura e que fora autuado; nesse caso ficara provado que o condutor tinha a mãe muito doente – morreu uma semana depois – e que a chamada era da senhora que cuidava da mesma pelo que o tribunal considerara que se justificava o atendimento do telemóvel apesar da proibição legal.

A Relação de Coimbra debruçou-se atentamente sobre o caso da Joana. De facto, a lei prevê o estado de necessidade que surge quando uma pessoa é colocada perante a alternativa de ter de escolher entre praticar uma ilegalidade ou deixar que, como consequência necessária de a não praticar, ocorra outro mal maior ou pelo menos igual ao da ilegalidade. Há outros requisitos para se poder invocar o estado de necessidade para justificar um acto ilegal, como a inexistência de outro meio possível de actuação menos prejudicial do que a ilegalidade praticada e, também,  a probabilidade de a ilegalidade ser  eficaz, no sentido de evitar o mal maior.

Para a Relação de Coimbra, não estando em causa o risco causado pela própria intervenção cirúrgica, que já fora efectuada, mas o risco proveniente de qualquer complicação pós-operatória, certamente que a Joana, quando fora contactada,  teria  solicitado informações ao hospital sobre a concreta evolução, nas últimas horas, do estado da paciente. E se tal estado configurasse uma emergência médica, certamente que a Joana  como médica especialista competente, estando  a mais de centena e meia de quilómetros do hospital,  teria  solicitado a imediata observação da paciente por um colega da especialidade ou a transferência da paciente para um serviço de urgência.  Para a Relação de Coimbra, de resto, a alegada indisposição da paciente desacompanhada de qualquer outro dado clínico objectivo como dores  intensas, febre alta, hemorragias, ou outros não permitia concluir pela existência de um perigo, um risco iminente e portanto, actual.  

E assim, atentos  os factos provados, a Relação de Coimbra manteve a condenação da Joana, uma vez   não se demonstrara que tivesse praticado a infração em causa para evitar um qualquer perigo já que não se apurara qual a alegada complicação da doente  e, ainda, porque nem sequer tinha sido alegado nem provado, que esse alegado perigo revestia um caráter atual.

Joana ou qualquer outro médico ficam a saber que  não podem  “ir a abrir” desculpando-se legalmente com uma mera necessidade profissional.

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