A eterna questão do segredo de justiça

Muito ruído para nada? Seria bom descer ao real...

A paisagem político-judicial do nosso país tem andado agitada com a eterna questão do segredo de justiça. É caso para dizer “nada de novo debaixo do sol” ou, como costumam dizer os participantes na Casa dos Segredos, "nihil novi sub sole".

Em Janeiro deste ano, como toda a gente se lembra, a procuradora-geral da República determinou a realização de uma auditoria aos inquéritos-crime que nos últimos dois anos tinham estado sujeitos a segredo de justiça e sido objecto de notícias sobre o respectivo conteúdo. A ideia, entre outras, era apurar em que momentos, fases ou locais, as violações do segredo de justiça tinham tido lugar, avaliar os procedimentos adoptados pelo Ministério Público e propor medidas práticas tendentes à eliminação ou significativa diminuição de violações do segredo de justiça. Pretendia-se, também, implementar medidas práticas que permitissem uma mais fácil investigação das inevitáveis futuras violações do segredo de justiça.

Segundo a nota então divulgada à comunicação social, a auditoria teria natureza urgente e seria efectuada “com prioridade sobre o demais serviço”, tendo sido designado um inspector do Ministério Público para desempenhar tão magna tarefa. Como toda a gente se lembrará, também, até esta data nada se soube sobre as conclusões ou o próprio andamento de tal auditoria, o que nos faz rejubilar com a eficácia do segredo de justiça que sobre a mesma impende.

Ao longo do ano que se aproxima do seu fim e enquanto aguardamos pacientemente os resultados da auditoria, houve diversos sobressaltos mediáticos sobre esta matéria, sendo que o mais recente é o questionário enviado pelo gabinete da procuradora-geral da República para a Ordem dos Advogados sobre esta matéria.

A primeira dúvida que nos surge é a seguinte: será que o inquérito se integra no âmbito da auditoria que se arrasta desde o início do ano? Será que o inspector designado para o efeito sentiu a necessidade de ouvir opiniões de advogados, de outros operadores judiciários e mesmo de jornalistas para chegar às conclusões que não devem tardar? Ou será que a auditoria já está arrumada numa qualquer prateleira na Rua da Escola Politécnica e este inquérito corresponde a uma fase superior da luta contra a violação do segredo de justiça? Terá o presente inquérito “prioridade sobre o demais serviço”?

No meio do denso nevoeiro em que estas questões navegam, o teor do próprio inquérito não nos ajuda muito. A maior parte das perguntas mais não é do que simpáticas e delicadas questões que poderiam ser levantadas em qualquer momento de convívio entre os operadores judiciários e que servem para se ficar com uma ideia do que é que as pessoas pensam sobre estas matérias. Perguntas do género "Parece-lhe que os magistrados do Ministério Público têm interpretado correctamente a intenção do legislador na sujeição dos inquéritos a segredo de justiça? E quanto aos demais intervenientes no processo, o que lhe parece?" não são seguramente excessivas na sua curiosidade, mas temos de convir que têm um interesse muito relativo. De qualquer forma, é sempre de louvar a preocupação e o interesse da Procuradoria-Geral da República em ouvir opiniões exteriores sobre a sua actuação nestas matérias.

Sucede, no entanto, que algumas das perguntas são um pouco estranhas, do género: "Pode identificar os autores de violações de segredos de justiça? E pode identificar os processos em que essas violações ocorreram?"

Para além de parecer ser um convite à delação, como foi e bem denunciado pela Associação dos Juízes, parece-me serem perguntas um pouco despropositadas, uma vez que estaríamos a falar da prática de crimes. Ou será que se está à espera de que alguém vá denunciar um crime e apontar nomes num inquérito deste tipo? E para quê? O que é que a Procuradoria-Geral da República iria fazer se alguém identificasse o nome de um advogado ou de um magistrado que num determinado processo tivesse violado o segredo de justiça? A intenção será, naturalmente, boa, mas os resultados serão, muito provavelmente, irrelevantes.

Seria muito mais útil sabermos os resultados da auditoria e descermos, assim, ao concreto, para podermos perceber do que estamos a falar quando falamos da violação do segredo de justiça. Quais os processos em concreto nos últimos dois anos em que houve violação do segredo de justiça? Como se concretizou essa violação? Em que momento do processo ocorreu a mesma? Quais as pessoas que tinham nessa altura acesso ao processo e à informação que foi indevidamente divulgada? A quem interessava essa divulgação? Quais as consequências da mesma em termos da investigação? E das estratégias da defesa e da acusação? Não sei se a montanha não iria parir um rato, mas seria bom para todos nós percebermos do que é que estamos a falar.


Advogado. ftmota@netcabo.pt
 
 
 

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