Educadoras acusadas de recusar água às crianças para não mudarem fraldas

Sete funcionárias de uma creche no Porto estão acusadas de 33 crimes de maus-tratos. Dizem estar a ser vítimas de vingança. Julgamento começa a 6 de Outubro.

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Educadoras e auxiliares acusadas de 33 crimes de maus-tratos. Rui Gaudêncio

“Não ligues Miguel, elas são umas bruxas”. A frase lançada por uma empregada da creche da Associação da Benjamim, no Porto, em Fevereiro de 2013, deixou o pai do Miguel (nome fictício) com a pulga atrás da orelha. Era a segunda vez que ouvia darem aquele conselho ao filho de dois anos e, desta vez, fazia questão de perceber quem eram “as bruxas” e porque Miguel devia ignorá-las. Por isso, esperou que a funcionária saísse do trabalho e confrontou-a.

Entre lágrimas, a empregada fez um relato surpreendente. Educadoras e auxiliares bateriam com frequência em alguns dos 33 menores, entre os três meses e os três anos, que frequentavam a creche. Muitas vezes na cabeça, porque não deixava marcas. Os mais velhos raramente brincariam. Passariam a maior parte do dia sentados no refeitório. E os mal comportados seriam enfiados num arrumo conhecido como o quarto escuro. Outros seriam imobilizados em cadeirinhas própria para automóveis, presos mais de duas horas. As educadoras evitariam dar água às crianças para que estes não fizessem xixi, nem necessitassem de trocar tantas vezes as fraldas.

Os relatos, apesar de surpreendentes, combinavam com as mudanças de comportamento do Miguel. Uns meses antes começara a fazer birras diárias para não ir para a creche. As crises de choro eram uma constante na chegada ao infantário. Sentiam-no nervoso. Regredira na fala. Batia na sua própria cabeça, batia nos bonecos, batia nos pais. Começara a resistir a sentar-se na cadeirinha do carro e reagia mal à colocação de cintos. Deixara de querer dormir sozinho com a luz apagada como fizera desde cedo.

Depois da denúncia, o pai do Miguel decidiu confrontar a vice-presidente da associação, simultaneamente educadora da creche. A profissional reconheceu que ameaçava as crianças com o quarto escuro, mas insistiu que tal não passava de uma forma de inibir os maus comportamentos. Admitiu ter dado umas palmadas nos ombros do Miguel, mas apenas isso.

A família não ficou agradada com a resposta. E decidiu fazer uma participação à Segurança Social. O Ministério Público foi chamado a intervir e acabou por acusar sete funcionárias, incluindo a vice-presidente da associação e a coordenadora da creche, pela autoria de 33 crimes de maus-tratos, o número de bebés e crianças que frequentavam a instituição no ano lectivo 2012/2013.

As arguidas pediram a abertura de instrução e o juiz que analisou o caso confirmou a acusação, tendo remetido o processo para julgamento. O seu início está marcado para 6 de Outubro, no tribunal de São João Novo, no Porto.  

Quando as técnicas da Segurança Social se deslocaram à creche, em Outubro de 2013, encontraram apenas duas funcionárias responsáveis pela supervisão de todas as crianças. No berçário e no refeitório as técnicas encontraram as tais cadeirinhas de transporte, onde a empregada dizia que as crianças eram presas. No relatório da visita dá-se conta que o quadro de pessoal da instituição não cumpria os requisitos legais, estando uma auxiliar em falta, e que a creche não possuía projecto pedagógico. Notava-se uma “desorganização da dinâmica educativa e falta de planeamento”, lê-se no documento, que o PÚBLICO consultou na 1ª. Secção Central Criminal do Porto.

A inspecção da Segurança Social refere que o material didáctico existente na creche era adequado e suficiente, mas não estava ao alcance das crianças o que impossibilitava que as mesmas o manipulassem ou explorassem.

“Quase diariamente”, pelo menos cinco arguidas, “deferiam bofetadas na cabeça dos bebés e das crianças que tinham aos seus cuidados, quando eles não queriam comer, ou sapatadas no rabo destes quando entendiam que eles se tinham portado mal”, lê-se na acusação, assinada pela procuradora Susana Catarino em Outubro do ano passado. De forma igualmente recorrente “agarravam nas crianças e meteram-nas à força na cama, tapando-lhes as cabeças com mantas e desferindo-lhes palmadas na cara e no rabo”, refere o Ministério Público.

Quando queriam castigar as crianças, todas com menos de três anos, continua a acusação, “colocavam-nas num quarto sem luz natural e com a artificial desligada que servia de arrumos, com a porta encostada”. Os meninos eram ainda sentados em cadeiras próprias de transporte em automóvel “amarrados com os cintos das cadeiras, assim as obrigando a permanecer por períodos que chegavam a duas horas seguidas”, precisa a procuradora.

Se estivessem irrequietos no refeitório as arguidas iam ”por trás deles e, com os pés, empurravam as cadeiras de encontro às mesas onde as crianças batiam com a barriga ficando com dores, posto o que lhe desferiam sapatadas, de mão aberta, na zona da nuca”.

À semelhança do relato da empregada da creche, o Ministério Público também nota que as educadoras “recusavam dar água a beber às crianças para que as mesmas não precisassem de ir à casa de banho, nem mudar fraldas”

Entre os episódios que a procuradora relata na acusação está o de um menino, da sala de 1-2 anos, que “porque ficava irrequieto depois de passar a manhã inteira a ver televisão no refeitório, era frequentemente agredido” por três das arguidas que “lhe desferiam sapatadas na testa”.

O mesmo acontecia a Miguel, quando começava a chorar porque uma das educadoras lhe retirara o seu peluche preferido, uma ovelha, que trazia de casa.

Esta é pelo menos a versão do Ministério Público, que baseia a acusação no testemunho de duas funcionárias da creche (que entretanto deixaram a instituição), de uma estagiária e de alguns pais. Foram feitas perícias médico-legais a vários menores, mas as mesmas não detectaram sinais de maus-tratos nos menores. “Não foi observável nenhuma sintomatologia psicológica que pudesse constituir-se de referência para a avaliação da alegada situação de maus-tratos”, lê-se em vários relatórios. Muitos pais foram ouvidos e mais de 30 referiram não ter razão de queixa em relação aos filhos, reportando alguns a afectividade que educadoras e auxiliares mantinham com eles.

Não foi o caso de Rui (nome fictício), que contou à mãe que a vice-presidente da associação lhe tinha batido nas costas e na cabeça. O menino de dois anos chamava a educadora de “bruxa” e dizia à mãe que ela “batia nos meninos porque era muito forte”. Também falava muito dos castigos no quarto escuro. Já Joana (nome fictício) não precisou de se queixar. A mãe decidiu tirá-la da creche quando, num dia ao chegar a casa, viu “dedos marcados” numa das pernas da menina de dois anos. Já não andava muito contente com os serviços da creche. Detectava, por várias vezes, que Joana usava durante muitas horas a mesma fralda.

As arguidas, na contestação que apresentaram em tribunal, não poupam críticas à investigação delegada na 3ª Esquadra de Investigação Criminal, da PSP do Porto. O advogado Alberto Amorim Pereira, que representa seis das sete arguidas, sublinha a “total estupefacção pela forma como a investigação foi conduzida” e queixa-se do “tratamento emocional dado aos factos”. “Tudo num quadro de fundo em que é patente, ao longo da recolha de prova que a esmagadora maioria dos menores que frequentam ou já frequentaram a creche em causa nos presentes autos eram acarinhados por todas as funcionárias, ora arguidas, saltando para o seu colo logo que chegavam à creche e tendo muito dos pais dificuldades em retirá-los de lá ao fim do dia, porque queriam ficar na creche”, realça.

A defesa resume tudo a uma “saga persecutória” montada por uma funcionária, que terá influenciado outra colega a fazer as denúncias aos pais do Miguel. Tudo não passaria, por isso, de uma “vingança” que, sustenta a defesa, levou à distorção de muitos factos. As cadeiras de automóvel que a Segurança Social encontrou seriam usadas apenas nos menores mais pequenos, enquanto estes aguardavam pela vez que uma cadeira alta ficasse livre. As crianças eram embaladas com palmadinhas no rabo e a cabeça era coberta não com mantas mas com fraldas de pano que as protegiam da luz. As birras do Miguel teriam afinal começado durante uma deslocação do pai ao Brasil, que durou um mês. O julgamento tirará as dúvidas. 

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