Miguel Galvão Teles

Era um grande jurista e, ainda mais importante, uma extraordinária figura humana.

Miguel Galvão Teles era um dos meus maiores e indefectíveis Amigos, já desde os tempos da licenciatura em Direito, apesar de ele ser dois anos mais velho do que eu; e a nossa amizade foi-se reforçando com o companheirismo nas lides do Direito Constitucional, em muitas circunstâncias políticas em que estivemos juntos (como a campanha eleitoral de Ramalho Eanes em 1980) e em tantas e tantas ocasiões das nossas vidas.

Começou a exercer as funções de assistente de Direito Constitucional em 1963-1964, o mesmo ano em que eu fui fazer o então curso complementar de Ciências Política-Económicas e em que me propus elaborar uma tese sobre inconstitucionalidade (a primeira tese sobre matérias de Direito Constitucional na Faculdade há mais de trinta anos). Ele e – devo dizer – Marcello Caetano, o professor da cadeira, incentivaram-me e com ele tive conversas extremamente úteis (era, aliás, um admirável conversador).

Quando, após o serviço militar, entrei como assistente e ele já tinha a regência da cadeira, fui seu colaborador durante dois anos, até que, pela minha parte, a partir de 1971-1972, com a divisão do 1.º ano em duas turmas, fiquei também com uma regência. Mas o diálogo entre nós intensificou-se e pode dizer-se que antes do 25 de abril éramos praticamente as únicas duas pessoas do corpo docente que se interessavam por temas constitucionais e cada um de nós fazendo lições policopiadas – as dele, a que chamou Sumários Desenvolvidos, e que, finalmente, após muitas insistências minhas, saíram impressas em 2011.

Estes Sumários Desenvolvidos marcam uma viragem decisiva na construção dogmática sobretudo dos direitos fundamentais, apesar do contexto do regime político da época. E isto, porque entendíamos que, perante uma Constituição como a de 1933, o melhor era tentar aproximá-la, tanto quanto possível, de uma Constituição normativa, em vez de apagar as virtualidades que ainda tinha, vindas das anteriores Constituições liberais. Assim lançaríamos pontes para um próximo Estado de direito.

Veja-se o modo como Miguel Galvão Teles procurava limitar as restrições a direitos e de liberdades constantes do tristemente célebre § 2.º do art. 8.º:

“Princípios basilares: 1º – o regime que o legislador estabeleça não pode, directa ou indirectamente, subverter as normas constitucionais, transformando aquilo que é excepção – o limite do direito ou a ilegitimidade do seu exercício – em regra; 2º – as razões em atenção às quais o direito é limitado ou o seu exercício é restringido têm de possuir, dentro do sistema constitucional de valores, força suficiente para justificarem a restrição ou a limitação. Terceiro princípio, que decorre daqueles: a definição do limite máximo de compressão do direito fundamental tem de ser sempre feita por via normativa, não podendo nunca ser deixada à discricionariedade da Administração.

Nem depois de deixar o ensino, absorvido por uma advocacia em que se distinguiu de forma notável, dentro e fora do país, ele abandonou a investigação no campo jurídico-constitucional, publicando estudos da máxima importância como Inconstitucionalidade pretérita, A competência da competência do Tribunal Constitucional ou Constituições dos Estados e eficácia interna do Direito da União e das Comunidades Europeias – em particular sobre o artigo 8.º, n.º 4 da Constituição Portuguesa.

Porém, Miguel Galvão Teles não era só constitucionalista – o maior constitucionalista português. Era um jurista integral, capaz de abranger e tratar, com alto nível, quaisquer questões jurídicas, desde as de Direito Civil (como demonstrou em Obrigação de emitir declaração negocial) às de Direito Processual e às de Direito Internacional; ao Direito Processual e ao Direito Internacional; e ainda matérias de Teoria e de Filosofia do Direito como em O problema da continuidade da ordem jurídica e a revolução portuguesa, A revolução portuguesa e a teoria das fontes do Direito, Temporalidade jurídica e Constituição [1].

Com Sérvulo Correia representou Portugal no Tribunal Internacional de Haia, na ação proposta contra a Austrália por causa do acordo deste Estado com a Indonésia acerca da exploração do petróleo no mar de Timor e granjeou um grande prestígio pelo brilhantismo das suas intervenções.

Dele disse Rosalyn Higgins, antiga presidente desse tribunal, na obra coletiva em sua homenagem (vol. I, pág. 517):

He is a man of intellect, and a man of action – and a man for whom the feelings of the heart are also important.

“We have experienced together important moments in the pursuit of justice. He is a remarkable practitioner in international law: his pleadings are brilliant and delivered with an exceptional authority and human warmth. He has also done me the honour of preparing a paper for the Hague Prize Colloquium held in December 2010.

“Miguel Galvão Teles is also an important author, on international law and on other areas of the law, too. His writings on international law are deep, and always rooted in legal philosophy, which has engaged him – as a scholar and as a man of action – all his life.

Sim, Miguel Galvão Teles era um grande jurista, em que se aliavam o saber, a inteligência, a capacidade de equacionar os problemas, com rigor e com atenção a todas as suas implicações sociais, e a capacidade de os resolver com criatividade.

E era, ainda mais importante, uma extraordinária figura humana, com uma simpatia irradiante, sem sombra de orgulho, alguém profundamente preocupado com as outras pessoas e com o seu país, muito afetivo e alguém profundamente voltado para o ideal de um futuro de mais justiça e mais fraternidade.

[1] Este e outros estudos constam de Estudos Jurídicos, Coimbra, 2013 e 2014

Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa, constitucionalista

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