Constituição de 1976: entre a tradição socialista e a deriva liberal

A crise económica actual constitui o mais duro teste de stress a uma Constituição com evidentes sinais de fadiga. Paradoxalmente, a pressão é mais induzida pela via ultraliberal do que pelo cunho marxista.

No texto original da Constituição de 1976 — aprovada exactamente há 39 anos pela Assembleia Constituinte pós-25 de Abril — é afirmada “a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”.

Quase quatro décadas e sete revisões depois (curiosamente a ultima revisão constitucional foi há dez anos), a lei fundamental portuguesa mantém ainda hoje, no seu preâmbulo, a expressão “abrir caminho para uma sociedade socialista”, frase símbolo de um cunho ideológico com raízes no articulado e cerne de querelas partidárias.

E a questão de fundo, mais actual, à volta da Constituição da República Portuguesa (CRP) é precisamente esta, a de saber se temos uma Constituição velha, carecida de uma actualização que já leva quase 26 anos de atraso, contados após a queda do Muro de Berlim, ou se, pelo contrário, a nossa lei fundamental é antes um clássico, um guardião do renascimento necessário que a actual crise económica veio tornar exemplar, ainda que necessitado de aperfeiçoamento.

Aquilo que é apontado como anacronismo da CRP não se fica pela semântica do texto introdutório, encontra-se em várias disposições de carácter programático e traduz-se em preceitos contidos tanto na Constituição social como na Constituição económica, onde pontifica a “eliminação dos latifúndios” [artigo 94.º].

Paradoxalmente, para as doutrinas de direita, a mais dura prova à adequação do modelo constitucional, nas últimas décadas, veio do lado que se considerava mais amigo e em direcção ao qual se julgava o caminho certo.

A crise económica e financeira, que ainda estamos a viver, constitui um ataque sem precedentes à legitimidade material do nosso direito constitucional, colocando em xeque a sua autoridade moral (como a define Luís Pedro Pereira Coutinho).

O teste de stress deixou marcas profundas, com sinais evidentes de fadiga constitucional.

Os princípios programáticos para direitos sociais “tendencialmente gratuitos”, na Saúde e Educação, descaradamente invertidos pela realidade dos factos; o princípio estruturante da separação de poderes violado ao ponto extremo de um efectivo “governo de juízes” em que o Tribunal Constitucional foi transformado, por várias vezes, ditando Orçamentos do Estado plurianuais; ou a banalização do mal que constitui a frequente e sistemática aniquilação do princípio da inviolabilidade da dignidade humana, com demasiadas pessoas a viverem abaixo daquele que deveria ser o mínimo constitucionalmente permitido, por exemplo por via de prestações sociais pouco superiores a 200 euros ou de desemprego definitivo.

Isto para não falar da mal resolvida relação entre a CRP (e as demais Constituições de Estados europeus) e o direito comunitário [artigo 8.º n.4], que devia fazer corar de vergonha todos quantos crêem no carácter científico do direito constitucional. (Tópico que nos levaria demasiado longe do tema de hoje, mas que será certamente o ponto de fuga do debate do mérito desta causa, para muitos que, erradamente, justificarão as limitações da nossa lei fundamental com a falta de uma Constituição europeia.)

A verdade é que, na vastidão dos seus 32 mil vocábulos, a CRP não encontrou respostas para a generalidade dos problemas supervenientes, suscitados por uma nova realidade político-económica ultraliberalizada pela financeirização extrema da economia.

Não assegurou o primado da política sobre a economia [artigo 80.º alínea a)], princípio basilar que deveria ter a força jurídica das normas preceptivas, de aplicabilidade directa e eficácia imediata, e, com esta fraqueza, meteu o lobo de Wall Street dentro do galinheiro dos direitos fundamentais, tanto dos sociais como dos de liberdade.

Ao demitir-se de ter mão na economia, que a mão invisível de Adam Smith afinal também não controla, o direito constitucional o nosso, assim como o do mundo dito "ocidental", em geral perdeu a guerra às externalidades, designadamente o combate ao desemprego e a batalha pela afirmação plena e universal da dignidade da pessoa humana.

Chegámos ao ponto de, perante desemprego real da ordem dos 30%, não percebermos que o problema, embora mascarado pela crise, é estrutural e não meramente conjuntural. As taxas de desemprego socialmente aceitáveis e economicamente suportáveis são coisa do passado, mas entretanto continuamos a procurar mecanismo para aumentar o horário de trabalho e o período de vida activa, não querendo ver que a solução necessária e adequada é outra, que passa pela valorização do trabalho e pela sua justa repartição como factor principal, nos nossos dias, da redistribuição da riqueza.   

É certo que o novo paradigma constitucional, de efectiva regulação económica, face ao fenómeno da globalização, depende de uma nova ordem internacional e desde logo europeia, que passa por uma nova concepção de Estado, assente nas pessoas, que implica novos modelos de organização do trabalho e de fruição social e cultural do exponencial aumento da capacidade tecnológica e produtiva, mas não é menos verdade que apenas o direito constitucional comparado é insuficiente para avaliar da aptidão de qualquer lei fundamental.

A nossa CRP carece efectivamente de acompanhar a passagem dos anos, mas temos mais dúvidas do que certezas, pelo que aqui fica exposto, que essa ultrapassagem deva ser feita pela direita.

Jornalista, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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