Social-democracia e aparelhismo

Para recuperar a credibilidade é necessário uma maior abertura e separar o trigo do joio.

A avaliar pelo que se tem passado na Europa nos últimos trinta anos – e ainda mais nos últimos seis meses – dir-se-á que a social-democracia parece definitivamente condenada.

E não se pode dizer que seja por culpa alheia, pois, como sabemos, foi com Tony Blair e a “terceira via” que se iniciou o abandono das velhas referências programáticas em defesa de um “pragmatismo” económico que abriria as portas à nova globalização neoliberal e com isso colocaria os velhos ideais republicanos cada vez mais na dependência de interesses e “valores” privados. Com mais ou menos críticas às ideias de A. Giddens, o certo é que um pouco por toda a Europa – inclusive em Portugal o PS de Guterres – o dito “socialismo democrático” vendeu-se a uma promissora globalização e entregou-se definitivamente ao eleitoralismo pragmático, processo que afastou a esquerda socialista de um projeto alternativo ao neoliberalismo. Embora com culpas repartidas, o resultado de tudo isso é a desgraça em que hoje nos encontramos a nível europeu.

Não é preciso voltar a citar os clássicos da ciência política para reafirmar aquilo que qualquer mortal minimamente lúcido percebe. Que os programas políticos e as promessas eleitorais só podem ser credíveis se quem os enuncia também o for. Mas como já não há ninguém – líder político, figura pública ou o que seja – acima de qualquer suspeita, o único meio de comprovar a idoneidade é pelo exemplo. De pouco adianta quando um partido fala de “abertura” e “renovação” mas permite que quadros e militantes seus que são alvo de processos judiciais (e nalguns casos até condenados pela justiça) continuem a ser protegidos pelos aparelhos. As pessoas – incluindo os mais jovens – já perceberam que a retórica e as boas palavras nada valem enquanto os exemplos de compadrio, de compra de votos e os casos de corrupção se forem sucedendo. Sabemos também que muitos portugueses, embora condenando os partidos, não deixam de cumprir as indicações do patrão, do merceeiro da esquina ou do chefe no emprego, sempre que a chantagem incide sobre algum dos seus interesses particulares, e acabam por alimentar o jogo. O nosso sistema partidário está contaminado e pode vir a implodir se os grandes partidos continuarem a persistir nos mesmos erros. Se os que triunfam e progridem nas estruturas partidárias continuarem a ser os “carregadores de piano”, os caciques e traficantes de consciências (essa cultura que começa logo nas jotas como é bom de ver), em vez de se promoverem os que antes de se dedicarem à política “profissional” deram provas da sua competência e talento em algum campo profissional ou ocupacional.

Para romper com essa lógica e recuperar a credibilidade é necessário uma maior abertura e separar o trigo do joio. As últimas notícias a propósito das listas do PS para as eleições ao Parlamento, nomeadamente o veto de António Costa e da Comissão Política Nacional à lista proposta por Coimbra (e outros distritos), dão por um lado um sinal positivo de que o atual líder não quer pactuar com tais ilegalidades, mas por outro comprovam o que muitos militantes socialistas há muito vêm denunciando, sem qualquer resultado. A força do aparelhismo tem como contraponto o vazio da política. Mas a génese disso reside numa cultura difusa, enraizada na sociedade, onde o tráfico de influências prevalece sobre os valores democráticos e a reverência ao poder sobre a autonomia individual. Todavia, tal não diminui a responsabilidade dos partidos, dos eleitos e dos governos, que têm a obrigação – e os meios – para travar essa tendência se quiserem realmente credibilizar a política e modernizar a sociedade.

As eleições “primárias”, que o Livre iniciou e o PS já pôs em prática (mas este apenas para a escolha do líder), são um instrumento interessante e democrático para imprimir transparência à vida partidária e dar a voz aos cidadãos. Mas nestas eleições apenas o Livre/Tempo de Avançar aplicou esse princípio na escolha dos candidatos e na ordenação nas listas, um exemplo que merecia mais visibilidade e que pode vir a contagiar positivamente outros partidos. Não sei se será o caso do PS, dadas as estranhas amarras que condicionam a sua vida interna e onde Coimbra tem sido um exemplo a diversos títulos lastimável. Como afirmava há uns dias uma conhecida militante socialista desta cidade, que se tem batido na luta contra a falsificação de fichas (Cristina Martins), “um partido que expulsa militantes com a desculpa que apoiaram independentes... coloca depois independentes a encabeçar as suas listas, exigindo o voto dos militantes…” Enfim, pode ser que seja desta…

É claro que a social-democracia precisa de ser repensada e atualizada, mas isso requer uma nova ética de rigor, de transparência e uma efetiva democracia interna no seio dos partidos. Inclusive a Europa dos “trinta anos gloriosos” precisa de repensar toda a sua experiência histórica e recuperar do baú da nostalgia as tradições filosóficas que fizeram dela o berço da civilização e do desenvolvimento, um conceito que precisa voltar a conjugar-se com democracia, progresso e justiça social. 

Sociólogo e professor da Universidade de Coimbra; candidato nas listas do partido Livre/Tempo de Avançar

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