Portugal em mudança: da decadência ao progresso?

Regenerar o país, no público e no privado, levará anos e exige assumir um modelo realista da natureza humana (nem santos nem pecadores).

1 – Portugal encontra-se ainda em estado crítico: é isso que sugerem os principais indicadores económicos e sociais (PIB, desemprego, risco de deflação, pobreza e rácio da divida no produto). Não apenas são ainda extremamente preocupantes, como as perspectivas de futuro não apresentam fundamentos para uma renovação de esperança dos portugueses.

Como dizia A. O. Hirschman, em Exit, Voice and Loyalty, quando os cidadãos não conseguem fazer valer a sua voz, votam com os pés, e isto tanto vale para a saída de um município como de um país. Os jovens emigrantes de hoje estão a votar com os pés. Como muda um país? Quanto tempo demora um país a mudar? Que possibilidades de regeneração para este país?

2 – Há três níveis e três tempos da mudança. O tempo curto é o das subidas e descidas da bolsa, do investimento que se faz ou não, do emprego que se cria e se destrói, dos acordos e compromissos políticos, da pequena e da grande corrupção, dos casos do BES, das assinaturas de contratos de PPP ou de contratos swaps. Num nível superior temos as estruturas de governança que enquadram estas actividades económicas e políticas: as instituições dos mercados de capitais, as entidades reguladoras (CMVM e Banco de Portugal), as estruturas de governança das empresas públicas e privadas, a estrutura base do poder político e judicial, bem como as regras do sistema político (em particular o sistema eleitoral). A mudança neste nível demora geralmente anos ou décadas (p. ex. o sistema eleitoral praticamente não mudou desde 1976). Finalmente, há um terceiro nível onde a mutação é ainda mais lenta que é o das normas e valores sociais, do capital social, da confiança, e da ética individual onde estas estruturas de governança estão incrustadas.

3 – Um país muda sobretudo quando há mudanças substanciais no segundo nível (onde as regras dos diferentes jogos, económicos, políticos e sociais, são definidas) e no terceiro nível, que consubstancia a qualidade das relações sociais, a importância relativa de normas de cooperação e competição, a confiança que temos, ou não, uns nos outros quer nas instituições. O tempo da mudança é assim necessariamente um tempo longo, pois exige a mudança de estruturas de governação. Paradoxalmente os media ocupam-se essencialmente da sucessão de eventos que ocorrem no tempo curto, respondendo aos anseios dos cidadãos que querem saber as ultimas novidades, seja da retaliação da Rússia às medidas da UE e EUA seja do estudante irlandês que esfaqueou uma professora. Devemos, porém, focalizar nas estruturas que mudam na longa duração.

4 – Portugal tem felizmente vários casos de excelência em diferentes domínios explicados por razões diversas (desde a indústria do calçado à investigação biomédica), mas os casos de decadência, no público e no privado, têm sempre o mesmo diagnóstico. Qualquer instituição, tem de um lado aqueles (indivíduos ou instituições) que transferem temporariamente os seus direitos a outros, que supostamente actuam em função dos interesses dos primeiros com uma contrapartida. Os acionistas e os credores cedem o seu capital na expectativa de receber respectivamente dividendos e juros. Os cidadãos cedem o seu voto na expectativa de que o partido em que depositaram confiança defenda a sua (deles) noção de interesse público. Finalmente, há entidades terceiras que também podem beneficiar quer de uma boa ou de uma má gestão da instituição. O progresso existe quando os recursos escassos (capital ou poder) são transferidos dos que os valorizam menos para os que os valorizam mais, e estes actuam para valorizar esses recursos que temporariamente gerem. A decadência verifica-se quando aqueles em quem se deposita confiança, os líderes empresariais ou políticos, usam do seu poder, da informação privilegiada que detêm para seu benefício privado, bem como das suas clientelas (que lhe reforçam o poder) em detrimento daqueles que supostamente representam. A captura do interesse público pelo privado pode derivar de uma combinação de factores: falta de transparência na informação, ausência de prestação de contas (accountability), deficientes sistemas de governação, regulação e controlo e falhas éticas pessoais ao nível das lideranças institucionais.

5 – O desempenho das instituições depende também da capacidade de liderança ao serviço da instituição, pelo que a seleção de bons líderes é necessária, ainda que não suficiente, para o seu bom desempenho. Quando tal não acontece e a transparência é fraca só se pode esperar o pior. Ainda esta semana ficámos a saber (ver artigo de A. J. Cerejo de 06/08/14) que Santana Lopes, na S. C. da Misericórdia de Lisboa (SCML), não só preenche os quadros da instituição com militantes da maioria como adjudica directamente a várias agências de comunicação a imagem da SCML porventura numa pré-candidatura presidencial. Para além disso a SCML foi das poucas instituições que não cumpriu a lei dos compromissos. Decerto que Maria José Nogueira Pinto terá tido melhor actuação na instituição. Na política, na mudança social, os actores contam, mas como se terá percebido são apenas um dos agentes da mudança.

6 – Os casos GES e BES são também paradigmáticos daquilo que referimos ao longo deste artigo. Como é possível que se tenha feito um aumento de capital do BES há apenas escassos meses e que os investidores aleguem agora desconhecer a situação do banco, caso contrário não teriam feito esses investimentos? É possível dada a falta de transparência das contas, das participações, dos investimentos. Deverá ser assacada a culpa às entidades reguladoras? Não serei eu a atirar a quarta ou a quinta pedra (pois as primeiras já foram atiradas) a Carlos Costa ou Carlos Tavares. Primeiro, pela consideração que tenho por ambos no exercício das respetivas funções. Segundo, porque desresponsabilizar os investidores na procura de informação sobre a melhor aplicação dos seus capitais é levá-los a uma procura de informação abaixo do que seria o óptimo. Um investimento comporta sempre um risco e quem o faz deve acautelar-se. O seu a seu dono e a responsabilidade é da liderança e estratégia do grupo.

7 – Também na política a liderança, as estruturas de governança e o projeto político são importantes. Concordo parcialmente com a opinião de vários politólogos (A. Costa Pinto, Marina Costa Lobo, André Freire) que alertam que as primárias abertas do PS darão maior personalização ao cargo de primeiro-ministro, já de si excessivamente personalizado. Porém, há benefícios do que isso representa de maior participação cívica e debate público. Sobretudo, os candidatos deverão ser claros quanto a aspetos essenciais da governança política. Que pensam sobre a reforma do sistema eleitoral com maior personalização do voto? E a incompatibilização de se ser deputado e exercer advocacia durante o seu mandato? E uma lei adequada contra o enriquecimento ilícito? E a diminuição considerável do número de assinaturas necessárias para uma iniciativa legislativa dos cidadãos? E a criação de grupos de estudo no partido que acompanhem as políticas públicas?

8 – Regenerar o país, no público e no privado, levará assim anos, e exige assumir um modelo realista da natureza humana (nem santos nem pecadores), escolher líderes capazes, desenvolver a ética pessoal e normas de cooperação, reforçar as exigências de transparência e prestação de contas, e desenhar estruturas de governança que alinhem os interesses entre os que delegam o seu voto ou o seu capital e os que, através deles, exercem respetivamente o poder político ou económico. Se o caminho é longo e moroso porque não começar já?

Professor do ISEG/ULisboa e Presidente do Instituto de Políticas públicas TJ-CS

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