Com uma década de atraso

A actual preparação de uma iniciativa legislativa parece ir contar agora com o pleno do espectro parlamentar, ou seja, o PCP entregou esta semana o seu projecto de lei, o BE entregou antes, o PSD e o PS prometem apresentar a tempo de contribuírem para um debate ainda não agendado em conferência de líderes mas que se anuncia para 3 de Março, num agendamento do BE.

A forma como tem sido tratado este assunto em Portugal mostra a falta de vontade real em fazer face à corrupção que têm os partidos com assento parlamentar. Tanto que há cerca de uma década se sucedem as tentativas de legislar sobre esta questão. Exemplo é o famoso pacote anticorrupção apresentado em 2006 pelo socialista João Cravinho, que por imposição da direcção do PS nem sequer conseguiu ver a luz do dia, sob a forma de projecto de lei, e ser debatido em plenário.

Com a legitimidade de quem no primeiro Governo de António Guterres, enquanto ministro das Obras Públicas, enfrentou a corrupção na Junta Autónoma de Estradas, com uma sindicância que levou ao fecho daquele organismo estatal, Cravinho propunha então um conjunto de ideias em que constava já a criminalização do enriquecimento ilícito. A proposta mereceu a oposição de vários socialistas, a começar pelo líder do PS e primeiro-ministro José Sócrates, e a terminar no líder parlamentar de então, Alberto Martins, que travou formalmente a iniciativa. O incómodo que o pacote Cravinho causou entre os socialistas levou mesmo a que Sócrates nomeasse João Cravinho como representante de Portugal na administração do BERD, despachando-o assim para uma espécie de prateleira dourada em Londres até ao final do seu consulado governativo.

Foi já na presente legislatura e sob a orientação doutrinária e jurídica da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, que o tema regressou a São Bento, passando a lei pela mão da maioria governamental. De novo se percebeu que o assunto não era caro a grande parte dos deputados da maioria e que na direcção da bancada do PSD apenas foi defendido de forma empenhada pela então vice-presidente, Teresa Leal Coelho. Neste caso, como o líder do PSD e primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho apoiou e aprovou a medida da sua ministra da Justiça, a obediência parlamentar da maioria levou à aprovação da lei, que veio a morrer no Tribunal Constitucional.

Com o mesmo argumento de que a medida já tinha sido criticada no passado, os juízes-conselheiros vetaram a lei da criminalização do enriquecimento ilícito, concluindo que esta medida invertia o ónus da prova e não respeitava a presunção de inocência. Um argumento que do ponto de vista constitucional faz sentido, mas o que é facto é que a inversão do ónus da prova tem precedentes em matéria de fuga ao fisco, como tem argumentado Paula Teixeira da Cruz.

E é com este adquirido de insucessos que o tema se prepara para subir de novo a hemiciclo. É desejável que, finalmente e ao fim de uma década perdida neste domínio do combate à corrupção, seja encontrada uma formulação jurídica que permita a investigação dos sinais exteriores de riqueza que não condigam com as declarações de património e de rendimento. Mais, é importante que esta medida não caia num populismo boçal de cavalgar a onda antipolíticos e procure criminalizar apenas os que ocupam cargos de eleição ou nomeação política. Não tem sentido fazer leis ad hominem, que se aplicam a determinadas categorias de pessoas. Esta medida legislativa tem de valer para todos.

Mas a verdade é que não há mais espaço nem tempo democráticos para que se assista à impunidade e ao desregramento com que alguma riqueza é ostentada na sociedade portuguesa, sem que haja aparente razão para essa mesma riqueza ter sido adquirida pelos que a detêm, para mais numa época em que a maioria da população do país foi levada a um empobrecimento real abrupto.

É preciso que os bois comecem a ser chamados pelos nomes e que a justiça possa ser consequente na sua acção. A verdade é que, de uma forma ou de outra, há mais ou menos tempo, todos ouvimos falar ou assistimos a casos em que os protagonistas manifestam uma ascensão social através da ostentação de riqueza. Durante anos, quem apontava o dedo ou falava sobre situações concretas era denunciado como invejoso.

Ora é preciso que em concreto o Ministério Público tenha meios expeditos para poder investigar e actuar, para que haja alguma hipótese de o Estado tentar controlar a corrupção e aqueles que enriquecem por meios escusos e não legais e se escapam da Justiça como areia entre os dedos.

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