A decisão acertada de António Costa

Compreendo o silêncio de António Costa mas parece-me imprescindível que nos próximos meses surja uma candidatura presidencial genuinamente de centro-esquerda.

António Costa agiu acertadamente ao renunciar agora à Presidência da Câmara Municipal de Lisboa. Estava a tornar-se por demais evidente que o exercício simultâneo das funções autárquicas e das de líder do principal partido da oposição prejudicava a sua capacidade de afirmação eleitoral.

Costa foi um bom autarca tendo, aliás, merecido um amplo reconhecimento popular bem patenteado no resultado obtido no último acto eleitoral. Como edil revelou uma inegável aptidão gestionária, numa linha de continuidade com a qualidade do trabalho já antes concretizado no desempenho de outras relevantes funções políticas. Da sua acção ressaltam como principais características positivas a imaginação programática, a capacidade de mobilização de múltiplos movimentos sociais e culturais e um elevado engenho prático. A cidade de Lisboa lucrou com a sua presidência e o país inteiro não ignora esse facto.

O dia de ontem marca o início de uma nova fase na actual liderança do Partido Socialista. São muitos os trabalhos que esperam António Costa até às eleições do próximo Outono. Homem experiente e lúcido terá consciência de que o seu capital político, que era imenso até ao instante em que derrotou António José Seguro, sofreu algum abalo nos primeiros meses da sua actuação como Secretário-Geral do PS. Uma parte substancial desse abalo resultou daquilo que poderemos designar como um conjunto de “ causas naturais “ – a metamorfose de um mito quase sebástico num líder com a obrigação quotidiana de participação na disputa política normal provoca sempre algum desencanto face à desproporção entre as expectativas criadas e a sua possibilidade de concretização efectiva. Nesse sentido, António Costa estava condenado a ser vítima da sua própria imagem. Era um preço que inevitavelmente teria de pagar sem que lhe possam ser assacadas responsabilidades próprias.

Agora, reconduzido para um estatuto mais consentâneo com a própria natureza da competição democrática, por definição avessa ao culto de providencialismos salvíficos, poderá concentrar-se na construção de uma proposta política susceptível de gerar um entusiasmo cívico desprovido de qualquer dimensão ilusória. É isso que o país lhe pede e que ele está em condições de lhe oferecer. A meu ver o sucesso da sua acção futura dependerá de duas questões nucleares: do talento na produção de um discurso que articule a enunciação de políticas alternativas com a apresentação de efectivas garantias da sua exequibilidade concreta; da inteligência na abordagem de dois temas especialmente sensíveis, quais sejam as coligações pós-eleitorais e a posição do partido perante as eleições presidenciais.

É sabido que a social-democracia europeia está confrontada com uma crise identitária que nas suas manifestações patológicas condena os partidos que se inscrevem nessa família política ou ao delírio propositivo ou à paralisia prática. Por vezes estes comportamentos associam-se mesmo, constituindo-se no verso e no reverso de soluções políticas condenadas ao fracasso. É chegada a hora de saber conviver com essa crise identitária que, no fim de contas, é o resultado inevitável da impossibilidade de adaptação instantânea à dinâmica de um mundo contemporâneo sujeito a permanentes e profundas mutações que afectam todas as áreas do saber e do agir. É preciso recuperar a ideia da esquerda democrática como o partido do movimento por oposição às várias formas de cristalização conservadora.

Ora, um partido do movimento não pode estar acorrentado à ilusão de uma identidade rígida. No nosso caso concreto isso implica a adopção de um verdadeiro programa reformista de âmbito europeu que, não iludindo os condicionalismos estruturais existentes, permita projectar uma intervenção política inovadora e susceptível de superar os estrangulamentos que têm impedido a realização de mudanças no sentido da promoção do bem comum. Esse programa deverá integrar questões tão importantes como a reformulação da arquitetura da União Económica e Monetária, a valorização de uma leitura benigna do chamado Tratado Orçamental, a redefinição das prioridades do investimento público e uma nova abordagem das políticas de incentivo ao investimento privado interno e externo. Esta agenda só terá condições de sucesso prático se for plenamente adoptada por toda a social-democracia europeia e se conseguir despertar adesões na sua vizinhança doutrinária, quer ao centro, quer mais à esquerda. Desse consenso estão excluídos quer os seguidores da linha austeritária até há pouco hegemónica, quer os extremistas que no fundo anatematizam a livre iniciativa individual no plano económico.

Numa intervenção recentemente proferida perante o grupo parlamentar dos Socialistas e Democratas Europeus António Costa fez um excelente diagnóstico da situação presente e chamou a atenção para a necessidade de construção de um projecto reformista vinculativo de todas as formações partidárias inscritas neste grupo político. A sua grande preocupação foi, justamente, a da criação das condições necessárias para a efectivação dos compromissos eleitorais a assumir. Esse é o caminho a seguir e ao qual deve ser dado a maior publicidade no debate político interno, já que fará toda a diferença ter como representante de Portugal no Conselho Europeu um Primeiro Ministro portador de um discurso sólido, claro e exigente em relação ao próprio devir do projecto europeu. Nesse plano António Costa dispõe de uma vantagem esmagadora sobre Pedro Passos Coelho. Não pode, por isso, permitir que alguns dos seus mais próximos concorram para o obscurecimento dessa vantagem devido a erros algo infantis na abordagem dos temas europeus, como aconteceu na gestão do caso da vitória do Syriza na Grécia. Esses erros não se podem repetir. Julgo que nesta nova fase o Secretário-Geral do PS se empenhará especialmente num esforço de credibilização da alternativa que visa consubstanciar, que não passa tanto pela apresentação de um programa exaustivo mas antes pela clarificação de duas ou três linhas prioritárias fundamentais. Nesse momento de clarificação não poderá ficar refém de uma preocupação de não desagradar a alguns sectores pouco propensos a admitir as vantagens de um novo consenso europeu conformado, em grande parte, pelo contributo activo da corrente socialista e social-democrata.

Como consequência desta opção resulta a imposição de uma vasta parcimónia na especulação sobre cenários pós-eleitorais, sob pena de se incorrer na prática da mais pura contradição. Fará algum sentido que o Secretário-geral do PS discipline algumas vozes demasiado impetuosas, muito dadas a proclamações definitivas pouco sustentadas na realidade. Não se pode correr o risco de antagonizar o programa e a estratégia, já que isso retira credibilidade a qualquer projecto político.

Por último, uma curta referência à questão presidencial. Compreendo o silêncio de António Costa mas parece-me imprescindível que nos próximos meses surja uma candidatura genuinamente de centro-esquerda, comprometida com o projecto europeu nos termos atrás definidos, afastada de uma lógica frentista na primeira volta do acto eleitoral e em condições de assegurar e promover alguns entendimentos de fundo na sociedade portuguesa. O próximo Presidente da República poderá ser chamado a uma redefinição das funções presidenciais sem necessidade de qualquer ruptura do actual quadro constitucional. As próprias circunstâncias poderão impeli-lo a uma leitura mais extensiva das mesmas. Isso aumenta muito a responsabilidade do escolhido e de quem escolhe.

António Costa já revelou ao longo da sua vida política possuir os recursos de inteligência, preparação e experiência necessários para a plena execução das tarefas de que está incumbido. A sua responsabilidade é imensa e não pode deixar de ser compartilhada por todos os militantes e simpatizantes do Partido Socialista.

Nota: Por razões óbvias acabei por escrever sobre outro assunto que não o que tinha anunciado na semana passada.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários