A conservação e restauro como forma de ver

No Dia Mundial das Artes, que se assinala nesta segunda-feira, porque não dedicar um momento à perspectiva de quem as conserva e restaura?

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A criação artística é tão antiga como a humanidade, e será aliás um dos seus traços definidores. Ora, da criação de uma obra de arte decorre inelutavelmente a necessidade de a partilhar com outras pessoas, o que, no caso das artes visuais, é indissociável das possibilidades de preservação da matéria que lhe serve de suporte. E se hoje podemos admirar e.g. as obras de Leonardo da Vinci – em cuja data de nascimento se assinala este dia – é porque durante os últimos cinco séculos houve uma intenção de as partilhar com o presente e com o futuro, traduzida em decisões (mais ou menos conscientes, mais ou menos consistentes) de conservação.

No último centénio, essas decisões fizeram nascer e têm moldado a disciplina e a profissão da Conservação e Restauro (CR), que lhes assegura as dimensões técnica e operativa e que, por isso, encontra na materialidade dos objectos a sua âncora fundamental. Ou seja: trabalhando de perto com outras disciplinas (das Ciências Sociais e Naturais, das Humanidades e das Tecnologias), a CR dedica-se ao estudo da produção, degradação, e preservação da matéria do património. Assim, uma intervenção de CR é sempre e antes do mais um ensejo privilegiado de conhecimento sobre a matéria dos bens culturais – mas necessariamente reconhecendo que um bem cultural é muito mais do que matéria, e que gerir mudanças nessa materialidade implica a análise crítica do conhecimento adquirido.

Ao trabalhar sobre a matéria dos objectos para que a sua transmissão responda às aspirações da comunidade em que se inscreve sem comprometer as aspirações de gerações futuras, a CR obedece a uma deontologia que defende a profissão e, sobretudo, que defende os bens culturais de perdas ou adulterações irreparáveis – um modus operandi que vincula as acções sobre a obra à honestidade e ao respeito por quem a criou, por quem a valoriza, pela passagem do tempo. E é precisamente este vínculo que autoriza a CR a intervir sobre aquela que será, por definição, a matéria mais valiosa de cada comunidade – a que será legada, incluindo a das obras de arte.

A CR é, afinal, uma forma de ver os objectos, de interpretar a matéria enquanto veículo de partilha, de reconhecer o imaterial na substância física; e por isso a sua prática idónea exige um tempo e uma dedicação ainda frequentemente considerados supérfluos. No entanto, o facto é que no trinómio criação-fruição-conservação que envolve qualquer obra de arte, se a criação é condição primeira de existência, a fruição e a CR são condições cruciais de perenidade.

Como escreveu Hannah Arendt n’A Condição Humana, “as coisas do mundo têm a função de estabilizar a vida humana”; por maioria de razão, o contributo da CR para a continuidade cultural da matéria das coisas mais importantes e únicas – incluindo as obras de arte – é essencial e não um luxo mais ou menos circunstancial e mais ou menos dispensável.

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