Agricultura diz que não é da sua competência salvar o sisão em Portugal

Espécie teve um declínio de 77% nos últimos anos e especialistas defendem que sem medidas urgentes irá extinguir-se no país

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Estudo revelou que nos últimos 17 anos o sisão (Tetrax tetrax) teve um declínio de 77% Rainer Mueller/GettyImages
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Os investigadores que acompanham o declínio do sisão (Tetrax tetrax) no país são unânimes em defender que sem uma intervenção clara do Ministério da Agricultura e da Alimentação (MAA), não será possível travar a extinção da espécie em Portugal. Mas, questionado sobre esta realidade, o MAA responde, consistentemente, que esta “não é matéria da competência desta área governativa”, remetendo todas as responsabilidades para o Ministério do Ambiente e Acção Climática (MAAC). Uma posição “impensável”, para um dos autores do mais recente estudo, que aponta para um declínio da espécie em 77% nos últimos anos.

João Paulo Silva, do Biopolis/CIBIO da Universidade do Porto, é o primeiro autor do artigo A nationwide collapse of a priority grassland bird related to livestock (O colapso nacional de uma ave estepária prioritária relacionada com a produção de gado), publicado recentemente na revista Scientific Reports e em que se conclui que, sem medidas de emergência, “a extinção da espécie é inevitável a curto prazo”. Mostra-se simultaneamente incrédulo e pouco surpreendido com a posição do MAA, que critica.

“Há todo um património natural dependente dos sistemas agrícolas. Por causa do sistema tradicional que vigorou durante muito tempo em Portugal, estas áreas agrícolas são hotspots de biodiversidade, são parte do nosso património natural. O MAA referir que não tem competência nestas matérias é um pouco como não reconhecer que existe um património natural associado às práticas agrícolas”, diz.

Uma realidade que influencia particularmente o declínio dramático que as aves estepárias (concentradas, sobretudo, no Alentejo) têm vivido, e que levou a uma aceleração na diminuição do sisão, mas também da abetarda (Otis tarda) e do tartaranhão-caçador (Circus pygargus).

Este declínio tem sido alvo de diversos alertas, com os investigadores e associações ligadas à conservação do ambiente a terem uma posição unânime: apesar de existirem factores secundários a contribuir para o desaparecimento destas espécies (como a seca, a diminuição de insectos ou o choque com linhas eléctricas), são as mudanças na produção agrícola o factor preponderante para o estado actual das aves estepárias.

A eliminação das grandes produções de sequeiro e a sua substituição por produção de gado e de forragens (com tempos de corte desajustados à nidificação das aves, levando à destruição de ninhos, ovos e até fêmeas adultas) são os principais responsáveis pelo estado periclitante destas espécies no país.

Os especialistas defendem que, sem medidas adequadas de compensação financeira aos agricultores para que invistam em culturas que permitam o desenvolvimento destas espécies, não se vai lá. E estas compensações são definidas em larga medida pelo PEPAC - Plano Estratégico da Política Agrícola Comum, que está sob a alçada, precisamente, do MAA.

Aliás, nas respostas enviadas ao PÚBLICO, o ministério de Maria do Céu Antunes refere o PEPAC, dizendo que ele “dá continuidade a um apoio [...] que se destina a apoiar os agricultores activos com parcelas de superfície agrícola situadas nas áreas designadas ao abrigo das Directivas Aves e Habitats, visando compensá-los parcialmente das desvantagens e restrições impostas pelos planos de gestão ou outros instrumentos equivalentes e que se traduzem em restrições na alteração de uso do solo”.

Contudo, quando questionado sobre que avaliação faz das medidas em vigor (incluindo esta) e se estão previstas outras para travar o declínio da espécie, a resposta repete-se: “Não é matéria da competência desta área governativa, sugere-se contacto com a área governativa do Ambiente e Acção Climática.”

Uma postura que também é criticada por organizações que, em duas ocasiões distintas, apresentaram queixas à Comissão Europeia, contra o Estado português, por causa da situação das aves estepárias no país, no que consideram uma violação dos pressupostos da Directiva Aves.

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Recurso a tribunais

A coligação de organizações ambientalistas C6 (SPEA, GEOTA, Fapas, LPN, Quercus e WWF/Aves) fê-lo ainda em Setembro de 2019 e a Zero em Janeiro de 2022. Para ambos, a resposta foi a mesma e representou um desapontamento.

“A Comissão Europeia demorou dois anos e tal para nos dizer que provavelmente temos razão mas que não se podem atravessar até as instituições nacionais serem descartadas. Aconselharam-nos a recorrer aos tribunais nacionais. Descartaram-se”, diz Joaquim Teodósio, da SPEA - Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves.

Paulo Lucas, da Zero, confirma que a resposta recebida foi idêntica. “A Comissão Europeia, em vez de ser a guardiã do que está nos tratados e na aplicação da legislação comunitária, chuta para os tribunais nacionais e onera as ONG, que têm de gastar dinheiro nos tribunais para fazer valer aquilo que é uma legislação comunitária”, diz.

Ambos discordam da posição assumida pelo MAA. “A Agricultura [o ministério] tem toda a competência, nem percebo como é capaz de dizer isso, porque é ela quem decide a aplicação dos fundos do PEPAC. Nada se faz sem a participação do Ministério da Agricultura”, diz Paulo Lucas. “A Agricultura [o ministério] é fundamental e pode ter um papel muito positivo. Ou há uma interligação séria entre os ministérios e os apoios que existem são utilizados de forma efectiva e adequada ou não conseguimos sair deste cenário negro”, insiste Joaquim Teodósio.

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As fêmeas de sisão podem ser mortas nos ninhos, durante a época de corte de fenos, uma verdadeira "armadilha" para a espécie GettyImages

O PÚBLICO questionou também o MAAC sobre a situação, mas este remeteu qualquer esclarecimento para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que garante ter medidas em marcha para tentar reverter uma situação que conhece bem.

Aliás, foram dados do ICNF que, em 2022, sustentaram a queixa da Zero à Comissão Europeia, que referia uma quebra de 76% do tartaranhão-caçador nos últimos dez anos (85% se se olhasse apenas para o Alentejo), 49% do sisão e 50% da abetarda.

Os dados mais recentes, recolhidos por João Paulo Silva e vários outros investigadores, apontam, no caso do sisão, para uma quebra mais acentuada, na ordem dos 77%, e de forma mais acelerada - é de 9% ao ano, o dobro do que acontecia no período entre 2006 e 2016, refere-se no artigo.

Na resposta enviada ao PÚBLICO, o ICNF reconhece que, apesar de as causas do declínio do sisão estarem “identificadas”, é necessário “aprofundar o conhecimento” nesta matéria, nomeadamente nas relações existentes entre as populações que vivem em Portugal e as de Espanha, onde a tendência de declínio é “semelhante”.

Além disso, o ICNF também reconhece que “as medidas agro-ambientais previstas no Programa de Desenvolvimento Rural destinadas ao apoio zonal não têm sido suficientes para reverter o declínio das aves estepárias” e garante que está a trabalhar em novas propostas para tentar reverter o processo.

A primeira que indica é a revisão da portaria que regula os apoios aos sectores agrícola e das pescas, pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, “em particular no que respeita ao apoio zonal”, refere a assessoria de imprensa do ICNF.

Depois, acrescenta-se: “Face à tendência da evolução desta espécie, que evidencia um consistente e preocupante declínio, deverão ser encetadas as diligências necessárias para que, no PEPAC, os compromissos associados ao Apoio Zonal sejam reavaliados e reajustados, de forma a contribuírem para reverter esta tendência. Deverá também haver um ajuste financeiro dos compromissos para promover a adesão dos agricultores com parcelas de superfície agrícola situadas nas áreas designadas ao abrigo das Directivas Aves e Habitats.”

Medidas que são pedidas por João Paulo Silva e outros investigadores, num artigo de opinião publicado na Wilder, sobre o sisão, a par com a gestão de emergência da população reprodutora, a criação de uma rede de reservas de gestão de longo termo, a salvaguarda do habitat no período pós-reprodutor, a promoção de habitat de invernada e a elaboração de uma cartografia e “sensibilidade” na instalação de energias renováveis e linhas eléctricas.

João Paulo Silva diz ficar apenas “mais ou menos” satisfeito com esta disponibilidade do ICNF, já que teme que as mudanças sejam discutidas “em gabinetes em Lisboa, sem conhecimento do terreno”. E a posição do MAA não ajuda. “Os esforços que deveriam existir para um trabalho conjunto entre a conservação da natureza e a agricultura não existem ou são muito poucos. E estas duas componentes do Estado deveriam trabalhar em conjunto e equacionar soluções que ouçam os agricultores e a academia”, defende.

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