“O Estado Islâmico atingiu uma eficácia nunca vista”

Manuel Navarrete é director do Centro Europeu de Contra-Terrorismo da Europol, que por causa do Euro 2016 enviou para França um grupo de especialistas.

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Manuel Navarrete DR

A ameaça do autoproclamado Estado islâmico é "cada vez mais global" e a mensagem já não se centra só na religião, diz Manuel Navarrete, director do Centro Europeu de Contra-Terrorismo da Europol e o responsável máximo da luta anti-terrorista na União Europeia. Depois de Bruxelas, já houve novas tentativas de ataque em França, na Bélgica, na Áustria e na Holanda. E Portugal não está fora do radar. 

No período de quatro meses, dois grandes ataques terroristas aconteceram no coração da Europa. Estamos a viver o “11 de Setembro” europeu?
Sim. De facto, os ataques de Paris e Bruxelas revelaram uma ameaça sem precedentes nos últimos dez anos. Por isso, todos os países da União Europeia (UE) e a Europol estão a tomar medidas para antecipar estes ataques, que resultam de um novo modus operandi, sem nunca esquecer a ameaça ligada a lobos solitários inspirados pelo extremismo jihadista.

Nunca tínhamos visto bombistas suicidas a actuar em solo europeu. O que mudou no último ano na estratégia do autoproclamado Estado Islâmico?
O nível de agressividade aumentou. O Estado Islâmico tem revelado uma precisão e uma hostilidade na forma como conduz os ataques, combinando o uso de armas automáticas e cintos com explosivos de uma maneira muito bem planeada e com uma eficácia nunca vista. Ao mesmo tempo, estão a usar uma estratégia muito agressiva de disseminação de propaganda em fóruns da internet, recorrendo a muitos idiomas da União Europeia, e já não só ao árabe, para que cidadãos que não possam ou não queiram viajar para a Síria se sintam de alguma forma integrados no Estado Islâmico.

A mensagem já não se centra só na religião?
Eles alargaram os seus alvos. A componente da religião continua lá, mas agora estão a dirigir-se a mulheres e a jovens de maneira muito mais directa, com o objetivo de ampliar as suas capacidades de recrutamento e radicalização. E fazem-no também de forma mais interactiva, recorrendo a outras plataformas, para manter viva a mensagem.

A que plataformas?
De todo o tipo. Vão evitando aquelas onde a polícia consegue ser eficaz. 

Quem são estes terroristas?
Tal como os jihadistas de Paris e Bruxelas, e outros detidos noutros países, muitos têm passado criminal (pequenos crimes), submetem-se a um processo de radicalização muito rápido e têm um acesso muito mais fácil a armas de fogo, documentos falsos e outros elementos que lhes permitem organizar ataques. É por isso que uma das nossas prioridades é identificar as suas conexões e assim ajudar os Estados-membros a antecipar os ataques.

Os ataques de Paris e Bruxelas provaram que há muitas falhas ao nível da cooperação e troca de informação. Até que ponto as autoridades são capazes de evitar uma nova investida?
A cooperação entre os serviços de informação ao nível da UE já era intensa, mas tornou-se ainda mais após esses ataques. A prioridade é identificar os suspeitos, incluindo os que ainda não são conhecidos da polícia. O que estamos a tentar fazer, ao nível da Europol, é tornar a cooperação entre os países multilateral (já não só bilateral), mais rápida e eficaz, tendo em conta que a ameaça é cada vez mais global e a estratégia do Estado Islâmico mais agressiva.

O campeonato europeu de futebol é considerado o próximo alvo potencial. Quais são os grandes desafios e como é que a Europol vai ajudar as autoridades francesas?
A ameaça é elevada, sobretudo porque este é um evento com um significado especial para os cidadãos europeus. França preparou um dispositivo inédito e também estabeleceu um centro de coordenação internacional, onde estarão reunidos muitos representantes de todas as polícias da UE. Nós destacámos uma equipa de peritos, com background em várias áreas, como contra-terrorismo, para apoiar as autoridades francesas na identificação de suspeitos e na prevenção de quaisquer ameaças relacionadas com o terrorismo, mas também com outra criminalidade associada a grandes massas, como roubos, fraude na venda de bilhetes e gangues de carteiristas. Foram para França esta segunda-feira e ficarão até ao último jogo.

Desde o último ataque, em Bruxelas, já houve outras tentativas frustradas?
Houve muitas operações de contra-terrorismo, que apoiámos, em países como Áustria, França, Holanda e Bélgica.

O nível de ameaça mantém-se alto?
Sim, mas estabilizou. Sabemos que ainda há pessoas a viajar para as zonas de conflito (Síria, Iraque e Líbia), mas a um ritmo estável, ao mesmo tempo que outros estão a regressar. E enquanto este fenómeno se mantiver, a ameaça está viva. Qualquer pessoa inspirada pela chamada “Jihad global” pode, por qualquer razão, cometer um ataque na Europa.

Até hoje, quantos jihadistas europeus viajaram para a Síria e Iraque e, desses, quantos voltaram?
Não há números oficiais, apenas uma estimativa: cerca de cinco mil terão partido para as zonas de conflito desde finais de 2012 e, destes, entre 20% a 30% (varia consoante o país) já terão regressado.

O Centro Europeu de Contra-Terrorismo (ECTC) foi criado em Janeiro. Qual é a sua missão?
Essencialmente melhorar a troca de informação e também a capacidade de análise, lançando mão das nossas bases de dados e recursos de inteligência financeira. Mais de 200 oficiais de ligação de países da UE e de países terceiros colaboram actualmente com o centro, que tem 60 peritos da Europol (até ao fim do ano, deverão ser mais de 80). Outra valência é a luta contra a propaganda terrorista online e actividades de extremismo violento, para apoiar investigações em curso nos Estados-membros. Temos cerca de 20 especialistas nesta área, que dominam todas as línguas da UE e estão a especializar-se também em árabe, turco e russo.

É um trabalho exclusivamente feito pela Europol ou são os países que indicam os conteúdos sensíveis?
De ambas as formas. Definimos em conjunto as prioridades relativamente a conteúdos violentos que importa detectar e monitorizar e depois reportamo-los aos fornecedores de serviços de internet – que, de acordo com os seus regulamentos internos, podem removê-los.

Quantas contas foram identificadas até agora?
Focamo-nos sobretudo nas principais redes sociais que, de alguma forma, actuam como canais de propaganda, recebendo e emitindo estes conteúdos. Outra prioridade são as contas que fornecem um serviço de tradução: por exemplo, recebem uma mensagem em árabe, traduzem-na para diferentes línguas e difundem-na pelas redes sociais. Desde Julho do ano passado, quando foi criada esta unidade, identificámos mais de oito mil contas, mais de 90% das quais já foram eliminadas – o que é muito positivo.

As grandes empresas estão mais conscientes deste problema?
Sim, isto demonstra um compromisso cada vez maior. As companhias estão mais conscientes da importância desta luta. Tem sido um esforço conjunto.

Portugal é um país tranquilo, onde não aconteceu até hoje nenhum ataque de inspiração religiosa. Isto significa que o grau de ameaça é mais baixo do que outros países europeus?
O terrorismo é muito adaptável e a estratégia tanto do Estado Islâmico como da Al Qaeda é usar os meios locais para produzir ataques, em ligação com os respectivos comandos. A ameaça varia, portanto, de acordo com cada país ou região. E é por isso que encontramos diferentes perfis de jihadistas em França, Bélgica, Espanha ou Itália: são ideologicamente semelhantes, mas com variações locais. Portugal, enquanto país ocidental, enfrenta o mesmo nível de ameaça do que os seus congéneres, mas há uma especificidade local. De resto, creio que as autoridades portuguesas, incluindo os serviços de informação, estão a fazer um bom trabalho no campo da prevenção e da cooperação internacional – e essa será a fórmula para reduzir ao mínimo a probabilidade de um ataque.

Desde os tempos da ETA que Portugal é considerado uma plataforma de recuo, onde é possível obter apoio logístico e documentos falsos. Alguns jihadistas ingleses estiveram cá antes de viajarem para a Síria. Mais recentemente, um dos terroristas envolvidos nos ataques de Bruxelas usou um nome português para escapar às autoridades. Foi detectada alguma outra ligação entre Portugal e os ataques de Paris e Bruxelas?
Essas investigações estão a ser conduzidas pelos países. O que sublinho é que, de facto, para camuflarem as suas actividades (alugar casas, por exemplo), os terroristas têm usado documentos falsos oriundos muitas vezes de redes de crime organizado. Se essas redes recorrem a identidades de cidadãos portugueses, ou de outras nacionalidades, eles usá-la-ão. Estão simplesmente a aproveitar a oportunidade. Penso que as autoridades portuguesas estão a ser intensivas na identificação de conexões com os ataques de Paris e Bruxelas e, se existirem indícios nesse sentido, irão seguramente partilhá-los connosco e com os seus congéneres.

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