E se os tablets estiverem a ser usados como chuchas?

Investigadora Ivone Patrão diz que há estudos internacionais que dão conta de baixo controlo parental sobre dispositivos móveis em crianças pequenas. Há pais que substituem a sua presença pela entrega de um smartphone ou de um tablet para conseguir fazer outras tarefas.

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A investigadora Ivone Patrão refere o "baixo controlo parental" sobre o uso de dispositivos como tablets ou smartphones por parte de crianças muito pequenas. Patrícia Martins

Por que decidiu começar a investigar o uso de dispositivos móveis dos três aos cinco anos? [A decisão] Decorre dos resultados que tivemos na investigação com adolescentes e pré-adolescentes nas áreas das dependências online e também porque, na minha clínica diária, encontro pais com dificuldades em controlar o uso de smartphones, tablets nestas idades. As crianças com cinco ou seis anos já lhes conseguem mexer, são muito fáceis, são touch. Eles têm uma memória visual fantástica e rapidamente estão a jogar um jogo, estão a aceder à Internet, conseguem aprender caminhos de pesquisa sem saberem muito bem o que estão a fazer.

Não sabendo sequer ler.
Apercebi-me de miúdos de quatro e cinco anos que sabem imensas palavras em inglês por causa dos jogos. Vão associando, o start, o open, o okay. O problema é que estamos a estimular a memória visual muitas vezes em detrimento de outro tipo de concentração e atenção para outras tarefas que, por exemplo, a leitura vai requerer, a interpretação de um texto. Se lhes damos estímulos rápidos, em que percebem rapidamente como se faz, depois, quando quisermos que se concentrem para aprender a escrever e a ler, eles já não vão estar tão motivados. A satisfação não é tão imediata como estar a jogar um jogo.

O que pretendem com o vosso estudo nestas idades?
Estamos a fazer questionários para pais para avaliar como fazem a gestão dos smartphones e dos tablets em casa. Numa fase posterior acompanharemos os miúdos ao longo do tempo, na escola, na socialização, entre os seis e os 10 anos, já no 1º ciclo.

O que diz a investigação já existente sobre o uso destes dispositivos nestas idades?
Está-se no início da investigação. Mas os estudos que existem dão conta de baixo controlo parental sobre estes dispositivos nestas idades, e também que há pais que substituem a sua presença, e eu diria o seu afecto, com um smartphone ou de um tablet, às refeições e nas horas livres que eles têm para brincadeiras.

Que problemas isso coloca?
Eu pergunto: que tempo é que eles têm para passar com os pais? Uma das perguntas que vamos fazer é se lhes contam uma história ao final do dia. Estou um pouco chocada porque já tenho metade desta amostra a dizer que não o fazem e que a hora de deitar é problemática.

É problemática por causa do uso deste tipo de dispositivos?
[As crianças] Estão numa excitação a olhar para um dispositivo que emana uma luz tão intensa, sobre a qual alguns estudos dizem que as crianças a esta proximidade não são capazes de fazer a destrinça entre a luz de um ecrã e a luz do dia. Há estudos que nos dizem que, se não fazemos o corte, estamos a emitir informação para um cérebro de uma criança de três, quatro e cinco anos que pensa que ainda é de dia. E depois, passados dois minutos, dizemos-lhe "vamos deitar".

Mas isso também era verdade para a televisão.
A televisão está a uma distância diferente. Na televisão eles têm tendência a focar às vezes o olhar num ponto, mas vêem brinquedos à frente e vêem o mano, e chega alguém e eles vêem. Os dispositivos são uma coisa de interacção deles com a máquina a uma distância muito próxima, sem outro campo de visão. Estão tão focados ali que o cérebro não percebe o que está à volta. Com a televisão apercebem-se do meio envolvente, [e percebem] que ficou noite.

Isso tem repercussões no sono?
Temos aqui um grande risco porque isto altera-lhes o ritmo do sono. Outros estudos dizem-nos que as crianças que dormem menos horas têm um comportamento mais irritável na sala de aula. Neste caso, com três, quatro ou cinco anos – as ditas idades das birras – provavelmente os educadores e os pais terão mais dificuldade em relacionar-se com eles e isto começa a ser uma pescadinha de rabo na boca – então se faz birras "toma lá e cala-te". Estamos a reforçar positivamente uma acção, o estar online, com imensas consequências do ponto de vista físico, do desenvolvimento e psicológico, porque eles, naquele momento, não estão em interacção, estão em interacção com eles próprios e com uma máquina.

Quis avançar com este estudo por causa dos casos que lhe chegam ao consultório...
Às vezes, na própria consulta, se estou mais dirigida para os pais e a criança está ali, e ainda que na consulta haja espaços de brincadeira e de jogos, há puzzles, desenhos, há uma mala lúdica, a criança tem também a tendência a querer falar e há uma entrega, às vezes quase automática, da mãe ou do pai – "olha, toma lá, cala-te um bocadinho que eu estou aqui a falar com a doutora". E eu tento desviar este comportamento e propôr aos pais e à criança "então e um desenho? E ali o puzzle? Depois podes vir-nos mostrar o desenho". Mas, claro, não posso desautorizar os pais. E obviamente, as crianças aceitam o telemóvel .

Por que é que os miúdos preferem automaticamente uma coisa à outra?
É muito mais estimulante, tem muito mais animação, e tem gratificação imediata: eles rapidamente conseguem subir de nível, e nos mais pequeninos, às vezes, o jogo até bate palmas e há uma voz que diz "uau, ganhaste". Isso tem uma gratificação muito mais imediata do que fazer um puzzle ou um desenho.

Porque são mais difíceis?
Podem ser mais desafiantes. O puzzle e o jogo provavelmente estimulam as mesmas áreas, que têm a ver com o raciocínio, mas o puzzle não interage, não dá gratificação. Na consulta, eles vão ter que esperar que eu, ou os pais, digam "ai que giro, conseguiste fazer", "ai o desenho está tão bonito". Aquilo é mais automático. Eles têm a certeza que vão ter gratificação e nem sempre os adultos, perante uma coisa que a criança faça, dão gratificação.

O jogo também desenvolve o raciocínio. Que vantagens trouxeram estes dispositivos?
Claro, não podemos ver isto numa perspectiva de 8 ou 80. Existem estudos que, pelo contrário, nos dizem que o uso de tecnologia é muito importante para a estimulação do desenvolvimento de competências e capacidades nos jovens. Existem aplicações online para o desenvolvimento da linguagem para crianças autistas, ou ao nível motor.

Refere-se a vantagens apenas para crianças com dificuldades?
Uma criança sem dificuldades também pode usufruir se houver controlo parental, se houver horas específicas de controlo que não ultrapassem outras actividades, que não sejam uma substituição de actividades de socialização e de actividades físicas essenciais para o bem-estar da criança e para o seu desenvolvimento. Também vai estimular o seu raciocínio lógico, a linguagem, a aprendizagem de outra língua, percebem que existem outras palavras para dizer as mesmas coisas do que em português.

Com que idade é que um miúdo deve começar a manusear um tablet? Na televisão fala-se dos dois anos.
As recomendações apontam para que seja partir dos dois anos para a televisão e também para o uso de todos estes dispositivos com luz, rápidos na imagem.

Porquê essa idade?
Tem a ver com o desenvolvimento cognitivo, mas também da visão, da compreensão. Se reparar, uma criança com menos de dois anos, tem muita tendência, numa televisão, a fixar-se num ponto e alhear-se. E, até aos dois anos, têm muitas coisas para se desenvolver. Se estiver um período largo do seu dia em frente a um televisor não vai estar a experimentar o andar, o cair, a interacção com os outros, não vai estar a experimentar palavras porque vai estar ali centrada só naquela estimulação.

Vê muitas crianças com menos de dois anos com estes dispositivos na mão?
Acho que vemos todos. Basta estar em qualquer sítio público para vermos carrinhos de bebés com crianças de telemóvel na mão, como se fosse um novo brinquedo que é dos adultos mas que também passou a ser para as crianças.

Por que é que os pais agem assim. Porque estão cansados?
Do ponto de vista clínico apercebemo-nos de que os pais têm sempre estes dispositivos com eles. Já saíram do trabalho ou ainda estão a ir para o trabalho de manhã mas já estão a responder aos emails ou a mandar mensagens e os miúdos também se apercebem disso. Estes pais têm isto na mão, facilmente o entregam. Percebem que têm aplicações e formas de entreter as crianças se começar uma birra. Com um brinquedo, geralmente é necessário haver interacção. Com os dispositivos móveis basta explicar uma vez. A interacção é entre o telemóvel e a criança, não é preciso o adulto estar presente.

É uma forma de os entreter em momentos de espera?
Há uma impaciência que precisa logo de ser acalmada. Nos estudos com adolescentes temos um dado que é um contra-senso: encontramos níveis de stress, ansiedade e depressão moderados a elevados mas com níveis elevados no bem-estar geral. Eles isolam-se, têm menos contacto social, estão mais tristes ou ansiosos mas, ao mesmo tempo, sentem-se bem quando estão a jogar. São geralmente miúdos com índices de dependência da Internet graves que nos dizem "mas eu não preciso de ajuda", porque se continuarem a jogar sentem-se sempre bem. Pela idade, os mais pequeninos têm muito menos auto-controlo e, se lhes vamos dando isso, não treinamos a sua resistência à frustração, a paciência, a espera, a ideia que às vezes as coisas não acontecem como nós queremos. Damos-lhes alguma coisa que lhes dá sempre bem-estar. Vamos estar a criar uma dependência de estarmos sempre a sentir-nos bem e não podermos nunca sentir-nos frustrados, tristes.

Com que idades começaram a usar a Internet miúdos que agora têm dependências online?
Com uma amostra dos 12 aos 25 anos vemos que os universitários, na faixa dos 20, começaram a usar a Internet nos 12, 13 anos. Os de 12, 13 anos já começaram a usar a Internet aos oito anos.

Quanto tempo passam os mais novos no uso destes dispositivos?
Usam-nos ao pequeno-almoço e depois de virem da escola, [em momentos] intercalados com banhos e a hora da refeição. Se formos quantificar dá umas três horas por dia, em média, o que para uma criança destas idades é muito. E a questão não é apenas o ser muito, é o ser sem interacção dos pais. É para ver se vai cumprindo todas as tarefas que tem que cumprir com aquilo agarrado. Lembro-me de uma mãe que me dizia que "às vezes ele vai da cozinha para o quarto agarrado àquilo a dizer ‘é só mais um bocadinho’". A questão que coloco é quais são os momentos da conversa?

Às vezes o castigo surge precisamente com a privação do dispositivo. "Fizeste isto ficas sem o tablet..."
A Kimberly Young, uma autora americana que foi das primeiras a fazer investigação nesta área, diz que é preciso negociar os usos com a criança, desde pequena: quais são as horas mais adequadas, o tempo, o que vamos lá fazer, quais podem ser as excepções e planear os castigos. Entre os três aos cinco anos é muito importante o time out. Em vez de dizer "agora não mexes mais nisto", é mais importante dizer "agora sentas-te um bocadinho no sofá e pensas no que fizeste". Se lhes retiramos a chucha eles não pensam em mais nada. O que se quer com o castigo é que pensem no comportamento menos adequado e indiquem soluções, mais do que dizer "não mexes mais nisto".

Quer dizer que os dispositivos estão de alguma forma a ser usados como uma chucha?
Penso que sim. Estes dispositivos acabam por ser a forma de eles também se acalmarem só que é uma forma com muito mais riscos do que uma simples chucha.

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