Reformas: entre a “lógica big-bang” e as “agendas partidárias míopes”

Foi a porventura mais célebre de todas as reformas, a “do Estado”, a que menos contribuiu para a popularidade reformista do Executivo.

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Maria Luís Albuquerque (PSD), Paulo Portas (CDS-PP) e Vieira da Silva (PS): os três partidos que assinaram o memorando da troika Daniel Rocha

Num curto texto de 22 linhas, assinado pelo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, a palavra “reformas”, ou o verbo “reformar”, repete-se. Exactamente 11 vezes. O Governo gaba-se de ter feito “20 reformas estruturais”, desde que tomou posse, em 2011. “Pusemos em marcha o maior e mais ambicioso programa de reformas para o país das últimas décadas”, afirma o primeiro-ministro. Mais do que isso: a tarefa política de “reformar”, para Passos, “significa colocar o bem-estar e as aspirações de todos acima de agendas partidárias míopes e estéreis”.

Esta última frase, que o primeiro-ministro publicou no site do Governo, sublinha aquilo a que os autores do livro Governar com a Troika: Políticas Públicas em Tempo de Austeridade chamam de “lógica big bang”. Pedro Adão e Silva explica ao PÚBLICO que a retórica “reformista” esconde “uma ideia perversa e negativa”, a de que existe “a” reforma. É isso a lógica “big bang”: “Em lugar de promover continuidades centradas em avaliação e monitorização de políticas anteriores, opta, antes, por substituir todo o legado por um conjunto de políticas novas que invariavelmente, no ciclo político posterior, não chegam a ser consolidadas.” 

As reformas chegaram, em força, ao léxico político com a assinatura do Memorando de Políticas Económicas e Financeiras com a troika. Lá estava escrito: “O ajustamento orçamental será apoiado por reformas estruturais detalhadas.” Um dos três “pilares” do memorando era dedicado às tais “reformas”.

O Governo apresenta as que fez: IRS, mercado de arrendamento urbano, IRC, mapa judiciário, mercado laboral, combate à fraude e à evasão fiscal, hospitais, política do medicamento, concorrência e regulação, licenciamentos, Administração Pública, fiscalidade verde, administração local, ensino profissional, sector empresarial do Estado, gestão das finanças públicas, descentralização, serviços de atendimento da administração, fundos comunitários e forças armadas.

O Fórum de Políticas Públicas, que estudou o impacto dessas reformas, faz um balanço claramente negativo. Pedro Adão e Silva e Maria de Lurdes Rodrigues identificam um “padrão recorrente de improvisação” e apontam apara a ausência de “uma estratégia reformista perceptível” em muitos dos domínios invocados pelo Governo e que faziam parte dos compromissos com a troika. “No que respeita às políticas para a competitividade e reformas estruturais, os estudos sublinham a existência de uma diversidade de situações. O Governo empreendeu reformas, sobretudo nas políticas de regulação e de liberalização dos mercados, em alguns casos, nos termos previstos no Memorando de Entendimento [MdE] e dando continuidade a políticas que vinham sendo seguidas (ex., regime de arrendamento de habitação e política do medicamento); em outros casos as reformas ficaram muito aquém do inicialmente previsto (ex., reorganização administrativa do território); em outros casos ainda, as reformas lançadas não estavam sequer previstas (ex., políticas de pensões) ou foram muito além do que estava inicialmente definido (ex., reforma do mercado de trabalho). As diferenças observadas entre as medidas incluídas no memorando inicial e as medidas efectivamente concretizadas permitem concluir que o MdE serviu de pretexto para a concretização de uma agenda marcadamente ideológica, que de outra forma dificilmente teria sido posta em prática.”

Ou seja, o memorando “foi utilizado como um instrumento de reforço das capacidades políticas do Governo”, que assim pôde avançar com “um conjunto de reformas que faziam parte da sua agenda programática, mas que sem esse constrangimento externo não teriam sido concretizadas”. Precisamente o contrário daquela afirmação de Passos Coelho que coloca as suas reformas acima das “agendas partidárias míopes”.

A “reforma do mercado de trabalho” é um exemplo disso mesmo, para os coordenadores do livro (que reúne trabalhos de dezenas de académicos e ex-governantes, como Manuela Ferreira Leite, Vítor Gaspar, Vieira da Silva, Lobo Xavier, Teixeira dos Santos, Paulo Rangel, Silva Peneda, Miguel Frasquilho, entre muitos outros). “O aumento do horário de trabalho, o congelamento do salário mínimo, a generalização dos contratos a termo e de reconhecimento legal de formas atípicas de trabalho foram opções do Governo em divergência com as linhas de orientação preconizadas pela Comissão Europeia.” 

Já as medidas na administração pública são “um exemplo de ‘não-reforma’, isto é, um conjunto de medidas avulsas, transversais e aplicadas sem diferenciação e sem atender à natureza dos serviços prestados, cujo propósito foi reduzir a despesa pública sem quaisquer ganhos de eficácia e/ou eficiência”.

O próprio programa da troika, que “era visto como um programa reformista exigente e sem paralelo na história recente do país”, rapidamente passou a ser visto como um documento “desajustado da realidade”, concluem Pedro Adão e Silva e Maria de Lurdes Rodrigues.  

Filipe Nunes, que analisa o impacto do programa da troika na opinião pública, acrescenta um dado: 67,6% dos inquiridos numa sondagem consideram que “Portugal está pior” agora. 

Foi a porventura mais célebre de todas as reformas, a “do Estado”, a que menos contribuiu para a popularidade reformista do executivo. Em quatro anos, foram feitos dois “guiões” (três, se contarmos com as “quatro páginas” que Portas mostrou a um desiludido Vítor Gaspar, num célebre Conselho de Ministros durante a sétima avaliação da troika, em 2013). Agora, algumas das suas medidas diluem-se nas outras “20 reformas”. Ouviremos falar dela no futuro?     

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