Dois dias de crise e emergência testados no universo das redes sociais

Um consórcio de empresas, universidades e autoridades públicas europeias, lideradas pelo grupo privado português Tekever, testou na Finlândia um conjunto de ambiciosas ferramentas informáticas para ajudar as forças de protecção civil em situações urgentes.

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A empresa acredita que tem um valor de mercado de cerca de 10 mil milhões de dólares KACPER PEMPEL/REUTERS

Na imensidão de verbas para financiamento em investigação que a REA (Research Executive Agency) representa para as empresas europeias, o projecto liderado pela portuguesa Tekever parece ser apenas mais uma gota no oceano.

Desde há cerca de dois anos que os investigadores portugueses gerem cerca de cinco milhões de euros para tentar desenvolver uma plataforma informática, e respectivas directrizes, de forma a aproveitar as redes sociais na resposta das entidades de protecção civil em situações de crise ou emergência.

Vistos a partir dos envidraçados prédios da Place Rogier, em Bruxelas, esses cinco milhões empalidecem perante o orçamento de 79 mil milhões que a Agência tem para distribuir até 2020. A REA é uma gigantesca máquina eurocrata que financia projectos tão díspares e disruptivos como a produção de fogo a partir de água, passando por “materiais inteligentes” que substituem o osso ou a pele até à montagem de satélites capazes de detectar sinais de vida em Júpiter.

Para tal, esta entidade da Comissão Europeia convida empresas, universidades e Estados europeus a juntarem-se para entregarem as suas propostas de investigação.

Foi isso que levou a Kuopio, uma pacata cidade finlandesa a pouco mais de 200 quilómetros da Rússia, na passada semana, mais de uma dúzia de investigadores e observadores provenientes dos mais variados quadrantes da União. Analistas portugueses com engenheiros franceses, um eurocrata italiano ao lado de um polícia inglês, dois psicólogos irlandeses a trabalhar no mesmo descampado gelado com sociólogos alemães, um polaco a testar a tradução simultânea via Skype na sala onde se acumulavam polícias e bombeiros finlandeses. Todos juntos para testar as numerosas horas de trabalho anteriores em três exercícios de simulação.

Durante quatro horas, a resposta dos serviços de emergência finlandeses e a utilidade das informações partilhadas por voluntários a partir da rede Twitter seriam testadas num descarrilamento ferroviário simulando um vagão a perder amoníaco, num acidente de aviação e numa tempestade de neve.

Kuopio era o cenário perfeito. Neve a rodos nos parques e lagos congelados, rodeados por uma impressionante floresta de pinheiros. Tudo isto a cercar uma pequena e moderna cidade de ruas largas e rectangulares, pejada de estudantes universitários, habituados a smartphones, apps e redes sociais.

“O cenário está agora operacional”, anuncia, pouco depois das seis da tarde, um dos operadores finlandeses. Começam a ouvir-se os walkie-talkies enquanto os tweets começam a surgir.

Ainda durante as simulações, já ressaltava a primeira evidência: a torre de babel de peritos europeus e as ferramentas por si criadas operavam afinadas e sem percalços. Numa sala sem janelas da Faculdade de Serviços de Emergência — na Finlândia, para se ser bombeiro, é necessária esta licenciatura —, os ecrãs iluminavam o ambiente com os tweets de dezenas de estudantes voluntários que relatavam os acidentes simulados. O crawler (programa de computador que navegava pela sucessão de tweets para detectar pistas sobre situações de emergência) desenvolvido pela multinacional francesa Thales encaminhava dados para a plataforma informática da portuguesa Tekever, que os operadores do 112 finlandês avaliavam, georreferenciavam e “validavam” para o corpo de bombeiros, as autoridades policiais e autárquicas de Kuopio. Os tweets — pretendia o projecto — ajudariam as autoridades a perceber melhor o que acontecia no terreno para, assim, melhor encaminharem respostas de emergência e alertarem a população.

Se estava nervoso com o teste final, Luís Simão, o alentejano da Tekever com menos de 40 anos, analista de sistemas e gestor do projecto, não o manifestava. Compenetrado e eficiente, ao longo das quatro horas circulou pelas dezenas de computadores e portáteis, resolvendo e apoiando os técnicos, polícias e bombeiros finlandeses na digestão e gestão dos dados. A confiança vinha da experiência de anos de proximidade com a plataforma More, da Tekever, utilizada pela Galp na gestão, leitura e instalação dos seus contadores ou pelo mobile banking do Santander.

O primeiro problema que surgiu foi resolvido rapidamente. “Não há geolocalização, esqueceram-se de o ligar nos smartphones”, alertava poucos minutos depois o francês Thomas Delavallade, da Thales. Quinze minutos depois, Simão já estava a testar um dos agentes.

“Acha que precisa de mais informação?”, perguntava o analista a um bombeiro. “Não tenho de pensar, comboio acidentado é informação suficiente”, respondia o homem de meia-idade fardado de azul. Segundos depois, no computador de um polícia de Kuopio, surgia a reprodução do tweet com a localização num mapa de onde este provinha.

A dada altura, a concentração séria do português e do francês tornou-se ainda mais evidente. Duas funcionárias da Câmara de Kuopio riam-se às gargalhadas, acompanhadas pela boa disposição do imponente revisor independente dinamarquês, Soren Ostergarde, contratado pela Comissão Europeia para vigiar o projecto.

Os estereótipos dos recentes anos de tensos preconceitos europeus invertiam-se. De sérios e compenetrados nortenhos, pouco se via. Dos joviais e descontraídos europeus do Sul também não se encontravam exemplos. Soren Ostergarde passou uma boa parte do exercício a rir-se do humor negro dos voluntários finlandeses. “Por favor, enviem mais fotografias”, pedia um tweet. “Mandar o quê? Um cão morto? Tens a certeza? Aqui vai.” Nos ecrãs do centro de comando surgiu uma gigantesca fotografia da personagem dos desenhos animados, Scooby Doo, sentada num avião com um chapéu de palha.

No dia seguinte, os investigadores europeus regressaram à faculdade para uma reunião com os operadores finlandeses. Técnica e tecnologicamente, ficava provado que era possível recorrer ao cidadão para fazer dele uma fonte adicional de informação para bombeiros e polícias em casos de crise ou emergência.

O problema, no entanto, residia noutra esfera. A hipótese inicial era recorrer a toda e qualquer rede social para “pescar” informação. O exercício apenas recorreu ao Twitter. Rui Gouveia, comissário da PSP, estava ali precisamente para trazer as ideias dos investigadores à realidade das “normas europeias”. Afinal, nem a Comissão Europeia gosta de um big-brother a espiar os cidadãos. O projecto ensaiou uma solução para evitar o problema. Criou um canal no Twitter para onde os utilizadores poderiam enviar tweets alertando para o que estavam a testemunhar. Mas nem assim a questão ficou resolvida. “As questões legais não permitem o acesso ao Facebook, [essa rede] permite o acesso a dados pessoais dos utilizadores e, assim, a legislação europeia não o autoriza. Já o Twitter, é diferente, é público”.

Os dois sociólogos alemães da Universidade de Greifswald alertaram depois para as limitações em relação à população, depois dos inquéritos feitos na Alemanha, França, Irlanda, Portugal e Finlândia: “As pessoas continuam a confiar mais na informação proveniente dos media tradicionais”.

Os bombeiros finlandeses torciam também o nariz à ideia de desencadear uma resposta a partir de um tweet. Faltava “informação precisa” e, além disso, o mais importante. “A comunicação de voz ajuda muito. Permite-nos fazer perguntas e avaliar o nível de pânico da pessoa”, resumia um dos bombeiros que operava na sala de controlo. Ainda assim, o exercício revelara as vantagens das redes sociais nestes casos. “As fotografias que recebemos foram muito importantes”, reconheciam outros dos bombeiros. Eram, afinal, imagens em tempo quase real do terreno, que podiam ajudar as autoridades a decidir melhor a “dimensão” da situação e que resposta dar.

Quem se mostrou mais entusiasmada foi a Polícia de Kuopio. Logo após o final dos exercícios, o oficial responsável pelo distrito marcou uma reunião com os investigadores finlandeses “para conhecer melhor o projecto e pensar numa adaptação possível à realidade”.

Uma realidade bem mais exigente do que os cenários onde a torre de babel de investigadores consegue trabalhar. No último exercício, alguns dos voluntários começaram a enviar tweets quando a simulação não tinha sequer arrancado. A situação resolveu-se com o habitual “desligar e ligar de novo” informático. “Por isso estamos a reiniciar a Matrix”, explicou um bem-disposto perito finlandês. O problema é que a União Europeia não tem um botão para “desligar e ligar de novo”.   

O jornalista viajou a convite da empresa Tekever   

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