Adopção, PMA e igualdade

O Estado português ainda procura impor um modelo de família aos seus cidadãos.

A possibilidade de adopção de crianças por casais do mesmo sexo foi votada e chumbada no Parlamento há duas semanas. O alargamento das técnicas de procriação medicamente assistida (PMA) a mulheres solteiras e a casais de mulheres foi ontem objecto de discussão parlamentar e terá exactamente o mesmo destino amanhã, numa nova votação.

Lembremo-nos: a alteração legislativa que veio permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovada pelo Parlamento, em 2010, com os votos favoráveis do PS, do PCP, do PEV e do BE – ou seja, de toda a esquerda parlamentar. Este projecto do Governo socialista visava introduzir igualdade no acesso ao casamento, uma instituição social que atribui direitos e deveres aos cônjuges e que tem uma importante carga simbólica. O Estado português reconhecia, assim, que a orientação sexual não podia continuar a servir de critério discriminatório nesta matéria e que, pelo contrário, todos os casais tinham o mesmo estatuto e, por isso, o mesmo direito de contrair casamento civil. No entanto, esta lei, que veio efectivar a igualdade no acesso ao casamento, referia explicitamente que os casais homossexuais continuavam impedidos de iniciar processos de adopção de crianças. Ou seja, uma lei cujo objectivo era claramente igualitário mantinha, ainda assim, uma desigualdade entre casais baseada na orientação sexual no que diz respeito à adopção.

Já a lei da PMA, de 2006 e igualmente da autoria do PS, também permite que apenas casais heterossexuais recorram a estas técnicas, excluindo mulheres solteiras e casais homossexuais (neste caso, de mulheres). A lei proíbe que uma mulher sem parceiro tenha, sozinha, um filho biológico, ou que um casal de duas mulheres tenha, em conjunto, um filho biológico de uma delas.

Porém, ainda antes destas alterações legislativas, a lei da adopção já previa que um homem ou uma mulher pudesse adoptar individualmente uma criança, sem que o estado civil ou a orientação sexual do candidato a adoptante funcionasse como critério para a decisão sobre a adopção. O Estado português, ao permitir que homens e mulheres possam, sozinhos, candidatar-se a processos de adopção, afirma que as famílias monoparentais estão em iguais condições de conceder um ambiente favorável à educação de uma criança. Apesar disso, a lei da PMA manteve uma discriminação que indicia o entendimento oposto: o de que uma mulher sozinha não teria iguais condições para educar um filho, devendo o Estado proibir-lhe essa possibilidade.

Por outro lado, a lei da adopção não introduz qualquer discriminação relacionada com a orientação sexual na avaliação dos potenciais adoptantes, pelo que, desta forma, o Estado português reconhece que homens e mulheres homossexuais estão em iguais circunstâncias relativamente a homens e mulheres heterossexuais no processo de avaliação de uma adopção individual – o que quer dizer que o Estado português considera que um homem ou mulher homossexual tem, individualmente, iguais condições para ser bom pai ou mãe, que a sua orientação sexual em nada pesa na sua capacidade parental. Porém, isso mesmo é negado quando se proíbe a adopção, não por indivíduos, mas por casais homossexuais.

Temos, então, leis cujas bases normativas chocam entre si. Algumas destas medidas legislativas mostram que o Estado português já não considera que haja um modelo de família tradicional a preservar, pois, se assim fosse, não aceitaria o casamento entre pessoas do mesmo sexo, nem a adopção apenas por um pai ou uma mãe sem que existisse “outra figura parental”. Mas a proibição da adopção por casais homossexuais e a proibição de mulheres “sem marido” de recorrerem a técnicas de PMA indiciam que o Estado português ainda procura impor um modelo de família aos seus cidadãos, impedindo o reconhecimento jurídico de outros modelos.

Tal como no passado em relação a leis semelhantes, também hoje, quer na questão da adopção por casais homossexuais, quer na questão do alargamento da PMA a todas as mulheres, os partidos de esquerda estão de acordo relativamente à sua aprovação. Do mesmo modo, PSD e CSD, à direita, mostram-se agora, como no passado, generalizadamente contra estas alterações. Este posicionamento não causa surpresa. Se há um critério que distingue particularmente a esquerda da direita em política é a sua preocupação com o valor da igualdade, sendo a esquerda tendencialmente igualitária, procurando reduzir as desigualdades (económicas, mas não só) existentes. Com estas votações, a esquerda portuguesa defendeu, em conjunto, a igualdade entre todos os modelos de família, independentemente do estado civil ou da orientação sexual dos seus membros. E a direita, pelo contrário, afirmou querer manter as situações de discriminação existentes por considerar que as várias famílias não têm igual estatuto moral, nem devem merecer igual protecção do Estado. Foi a igualdade de direitos entre indivíduos e famílias que esteve em causa – e a esquerda e a direita mostraram inequivocamente de que lado se colocavam.

Politóloga, Instituto de Políticas Públicas TJ-CS e UBI

Sugerir correcção
Comentar