Uma década para garantir que todos os seres humanos têm direito a um país

O ACNUR calcula que há dez milhões de apátridas no mundo. A cada dez minutos nasce mais uma criança condenada a esta "forma silenciosa de exclusão".

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O ACNUR calcula que desde 2011 nasceram 50 mil crianças sírias no exílio DIMITAR DILKOFF/AFP

Nascem longe do país dos seus pais ou num Estado que não os reconhece como seus; perderam a única cidadania que tiveram por causa dos turbilhões da história ou de guerras que os obrigaram a fugir à pressa, sem qualquer documento. São apátridas, pelo menos dez milhões de pessoas em todo o mundo, um terço das quais crianças, que por não terem um documento que as identifique são privadas dos direitos mais básicos.

“Sem nacionalidade não somos mais do que um animal selvagem que vagueia de um sítio para o outro”, disse à Reuters Maryam Draogo, que só há poucos meses conseguiu ser reconhecida como cidadã da Costa do Marfim. “Não somos ninguém, não pertencemos a lado nenhum”, explicou, no mesmo dia em que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) pôs em marcha uma campanha internacional com um objectivo ambicioso: assegurar que no prazo de dez anos não haverá um único ser humano sem direito a ter um país que possa chamar seu.

“Ser apátrida faz as pessoas sentir que a sua própria existência é um crime”, disse António Guterres, o alto-comissário, no arranque da iniciativa I Belong (Eu Pertenço), lançada 60 anos depois de as Nações Unidas se terem comprometido pela primeira vez a resolver esta “forma silenciosa de exclusão”. Mas, apesar de progressos recentes, a cada dez minutos nasce no mundo uma criança sem direito à cidadania, calcula o ACNUR – um ser humano a quem provavelmente será negado o direito de estudar, de ser tratado num hospital, de ter um emprego estável, de viajar livremente ou de sequer se casar. Estes “fantasmas legais”, como lhes chama a ONU, estarão por isso mais expostos à pobreza, a abusos e até à escravatura – sem nacionalidade, nenhum Estado defende os seus direitos e não podem recorrer também aos tribunais.

“Isto é absolutamente inaceitável, é uma anomalia em pleno século XXI”, afirma Guterres, primeiro signatário de uma carta aberta onde constam os nomes de 30 celebridades, incluindo a embaixadora do ACNUR Angelina Jolie e o arcebispo sul-africano Desmond Tutu, e que será agora transformada numa petição com o objectivo de recolher dez milhões de assinaturas.

São diversas as razões pelas quais alguém nasce ou se torna apátrida. Uma das principais é a discriminação étnica e religiosa que explica, por exemplo, que a Birmânia não reconheça cerca de um milhão de rohingyas (minoria islâmica do país) ou que só recentemente o Bangladesh tenha permitido ao povo bihari (de origem indiana) adquirir a nacionalidade. Mas há também o caso dos cidadãos de países que deixaram de existir, como a ex-União Soviética, e que não foram reconhecidos por nenhum outro – dos cerca de 600 mil apátridas que vivem na Europa, cerca de metade tem etnia russa e reside nos países bálticos.  

Mas, hoje como no passado, a guerra permanece uma das principais causas para esta forma extrema de invisibilidade, e o conflito na Síria é um bom exemplo. O ACNUR calcula que desde 2011 nasceram 50 mil crianças sírias no exílio e só no Líbano, o país que mais refugiados recebeu, 70% delas não foram registadas à nascença. A Síria é um dos 27 países que não reconhecem o direito das mulheres a transmitir a sua nacionalidade aos filhos e muitas das mães que dão à luz nos campos de refugiados deixaram os maridos para trás ou não trouxeram consigo a certidão de casamento necessária para registar os recém-nascidos.

O ACNUR diz, no entanto, que há sinais de optimismo – alterações à lei em vários países permitiram a quatro milhões de pessoas obter a nacionalidade – e propõe um plano de acção para garantir que, em 2024, nenhuma criança nasce sem ter direito a um país e assegurar que todos os Estados removem das leis de cidadania todas as discriminações com base no género, religião ou etnia. “Há 60 anos, o mundo decidiu proteger as pessoas sem pátria”, lembram os signatários da carta, dizendo que “agora é tempo de pôr fim a essa situação”.

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