Magistrados avisam que registo de abusadores de menores pode violar a Constituição

Proposta que permite acesso dos pais à lista viola a Constituição e é "populista e perigosa". Procuradores questionam mesmo se se pretende proteger as crianças com "milícias de caça ao pedófilo?"

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Daniel Rocha

Juízes e procuradores mostram-se muito críticos e preocupados quanto à proposta de lei do Governo que pretende permitir aos pais o acesso ao registo criminal de condenados por crimes de abusos sexuais de menores. Consideram que tal acesso – com a criação do registo concordam - viola a Constituição, é populista e poderá gerar violência na sociedade.

“Não se evidencia qualquer utilidade, em termos de prevenção geral, que vá além de uma dimensão populista, demagógica, perigosa e inconsequente”, diz a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) num parecer que recorda ainda que todos os cidadãos são iguais, têm a mesma dignidade social e o direito à protecção contra qualquer discriminação. Em causa estão também alterações ao Código Penal e à Lei de Protecção de Menores.

Os juízes salientam que “não existe um direito à segurança de tal forma amplo que determine o dever do Estado dar a conhecer aos seus cidadãos o passado criminal de outros membros da comunidade”. Alertam ainda para “alguns resultados trágicos que decorrem de exemplos ocorridos em países onde existem leis similares” que “deveriam levar a uma clara rejeição da proposta”.

Para os procuradores, o receio é o mesmo. “A proposta nesse ponto é populista e o acesso ao registo viola a Constituição e pode potenciar a justiça privada”, disse o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), Rui Cardoso.

No preâmbulo da proposta, que ainda está em fase de discussão pública e de recolha de contributos, o Ministério da Justiça sustenta que o registo “corresponde a objectivos de prevenção criminal” impostos pela Convenção de Lanzarote e por uma resolução europeia. A tutela diz ainda que a iniciativa é inspirada “nas experiências consolidadas do Reino Unido e da França”.

Mas num parecer, o SMMP avisa que permitir o acesso a listas de abusadores com a justificação de que se pretende proteger as crianças “é um argumento puramente pedagógico”. “Proteger as crianças como? Organizando milícias populares de caça ao pedófilo? Substituindo-se às actividades próprias das entidades policiais? Criando nas crianças um sentimento de medo permanente de circular em determinada zona?”, questiona.  

Os procuradores entendem ainda que o regime “é anacrónico” e “ostensivamente ilegal” por violar também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Aliás, recordam que as polícias só podem aceder à informação em causa quando tal se justifique nas suas missões, mas que “estranhamente” não se exige aos pais uma justificação. Os requisitos previstos são, dizem, “manifestamente excêntricos” e uma “tentativa falhada” de alguma exigência. Os pais terão apenas de comprovar o local onde residem e que a criança frequenta a escola. O polícia na esquadra “é quem vai decidir se fornece ou não a informação”, criticam.

Outra crítica é feita relativamente ao facto de a proposta ir mais longe do que a directiva comunitária de 2011 relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil. Nela, “o acesso não é imposto nem sequer aconselhado”, sublinham. O nome, a idade e a morada dos condenados passa a integrar uma base de dados informatizada que estará acessível a pais com filhos até aos 16 anos. 

Já quanto aos restantes aspectos da proposta, os magistrados reconhecem vários pontos positivos. O projecto propõe ainda uma alteração ao Código Penal para que quem seja condenado fique impossibilitado de exercer, por um período entre cinco e vinte anos, funções ou actividades junto de menores. Não poderão também assumir a confiança de menores, adopção, tutela, acolhimento familiar e apadrinhamento civil.

Os condenados ficam ainda inibidos de exercer responsabilidades parentais durante o mesmo período e no caso dos crimes de actos sexuais com adolescentes a moldura penal sobe para dois anos de prisão sem possibilidade de ser substituída por multa.

Acesso dos pais a lista é “justiça de apedrejamento”, alertou Sampaio
Foi no final da semana passada que o tema voltou à agenda. No X congresso de juízes, em Tróia, não existia qualquer tema relacionado com a proposta para o registo de abusadores sexuais de menores, mas o antigo Presidente da República Jorge Sampaio criticou-a duramente durante o seu discurso. Considerou que representa "regresso ao pelourinho e à justiça de apedrejamento".

O ex-Presidente da República pensa que a intenção da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, constitui “mais uma manifestação da deriva securitária” que tem combatido nas últimas décadas, e que simboliza “o que há de mais contrário à dignidade das pessoas”.

Uma crítica que a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, também presente no encontro de magistrados judiciais, rebateu. “Então também existirá justiça de pelourinho em vários países da Europa ocidental que têm este sistema”.

Também o ex-procurador-geral da República Pinto Monteiro tinha, em declarações à Lusa, criticado o diploma, com argumentos idênticos aos de Jorge Sampaio. 

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