Reformas de pacote

O combate à corrupção reduz-se a um desses temas que os partidos gostam de manter propositadamente vago.

O Parlamento votará em breve mais um pacote de medidas de combate à corrupção. Eis o problema das reformas de pacote: o que se prepara são meras afinações às leis penais existentes, transpondo para o nosso sistema jurídico algumas recomendações do Grupo de Estados contra a Corrupção (Greco) do Conselho da Europa, das Nações Unidas e da OCDE.

Note-se que as recomendações do Greco (seis sobre o tema da incriminação, sete sobre financiamento político) foram apresentadas às autoridades portuguesas há quatro anos. Em 2012 foi publicado um relatório de progressos no cumprimento destas diretrizes, onde se conclui que das 13 recomendações feitas pelo Greco em 2010, apenas uma tinha sido cumprida: cinco das seis recomendações sobre incriminação e três sobre financiamento político estavam por cumprir, sendo que as restantes quatro estavam parcialmente implementadas. Portanto, houve um atraso de pelo menos dois anos por parte das autoridades portuguesas.

Compreende-se alguma dificuldade, se não mesmo desconforto, do Governo nesta matéria. Nos últimos três anos, não só não houve qualquer progresso significativo neste domínio (recorde-se, por exemplo, que a “medida-bandeira” da ministra da Justiça – a criminalização do enriquecimento ilícito – foi chumbada pelo Tribunal Constitucional) como se continuou a assistir a situações polémicas e de venalidade dos eleitos, algumas das quais diretamente ligadas à figura do primeiro-ministro e que estão a ser alvo de investigação por parte do Organismo de Luta Antifraude da União Europeia, como o caso Tecnoforma.

O PÚBLICO noticiava recentemente um possível entendimento ou consenso entre o PSD e o PS para a aprovação das medidas de foro penal, nomeadamente o agravamento das penas, a punibilidade da tentativa, o alargamento da moldura penal do tráfico de influências, a isenção de pena para os arrependidos, etc. As palavras consenso e entendimento vulgarizaram-se de tal forma que muito facilmente qualquer acordo legislativo logrado assume uma dimensão simbólica desproporcional ao seu real valor. Não espanta o entendimento dos dois maiores partidos nestas matérias, porque se trata de recomendações internacionais resultantes de processos de avaliação em que os governos de ambos estiveram envolvidos e porque as questões penais são mais técnicas e por natureza mais consensuais. (Note-se que este entendimento entre os dois partidos não existe em relação à reforma da lei de financiamento político que está a decorrer por iniciativa da maioria parlamentar, deixando à margem as recomendações do Greco).

O que é mais surpreendente nesta história é que se continue a legislar sem qualquer orientação política. Não existe e nunca existiu uma política ou estratégia de combate à corrupção em Portugal. Alterações às molduras penais são o ritual do habitual folclore anticorrupção. Falta fazer tudo o resto: análise de riscos, alteração de procedimentos, avaliação de culturas organizacionais, efetivação dos mecanismos de supervisão, especialização e capacitação dos órgãos de investigação, etc.

Tal como concluiu o relatório de avaliação do Sistema Nacional de Integridade da TIAC, o único documento desta natureza produzido até à data, a ausência de uma orientação política estruturada, com objetivos claros, recursos adequados para a sua execução e metas a atingir, está na base da comprovada ineficiência do combate à corrupção em Portugal. Em vez de vontade política e clareza de propósitos, o combate à corrupção reduz-se a um desses temas que os partidos gostam de manter propositadamente vago nos seus programas de governo, para que toda e qualquer iniciativa possa ser reclamada como um avanço e para que o ruído gerado em torno de medidas avulso nos distraia da inexistência de resultados palpáveis neste domínio. Quando não há seriedade nem sistemática, o que sobra são reformas de pacote.

Universidade de Aveiro e presidente da TIAC

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