Os turcos têm tanto a perder, os curdos tudo a ganhar

Como aconteceu na Síria, primeiro por causa de Assad, depois por culpa dos jihadistas estrangeiros, agora que o ISIS ataca no Iraque os curdos beneficiam por estarem sempre prontos à espera de um futuro desejado.

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O marketing dos curdos é sempre rápido a agir

Os curdos têm toda a paciência do mundo e nunca perdem tempo. Em 2004, explodiam bombas por todo o Iraque e já o slogan da região semiautónoma que os curdos têm no país (Curdistão iraquiano) era Curdistão – O Outro Iraque. Venham, turistas, venham, investidores, venha o futuro e a estabilidade e um dia, demore o que demorar, um verdadeiro Estado para o maior povo que não tem um (são 25 a 40 milhões).

Na terça-feira, os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS) conquistaram Mossul, a segunda maior cidade iraquiana. Na quinta, já havia cartazes de apoio aos peshmerga (combatentes curdos) com o título O Poder dos Peshmerga no Curdistão do Sul (no Iraque; o do Norte fica na Turquia, o Ocidental na Síria; o Oriental no Irão). Parte do sonhado Estado é desenhado com letras – nomes de cidades; em destaque, a vermelho e na vertical, surge Kirkuk, centro petrolífero do Iraque, abaixo da região que os curdos governam, é a cidade que reclamam como capital histórica.

As autoridades curdas iraquianas apoiaram os curdos da Síria, o mesmo fizeram os curdos da Turquia (é lá que vive a maior comunidade deste grupo étnico). Assim, enquanto Bashar al-Assad arrasava cidades atrás de cidades e os rebeldes da oposição ora lutavam entre si ora se defendiam de Assad, os curdos, com os seus partidos e as suas milícias, assumiam o controlo de regiões inteiras, tratando da organização política e social, abrindo hospitais e escolas, formando polícias, aprovando leis e fundando tribunais.

Agora, os curdos do Iraque uniram-se aos xiitas do Governo de Nouri al-Maliki para salvar Bagdad e impedir que o ISIS ganhe ainda mais terreno. Entretanto, decidiram ocupar Kirkuk para que a cidade – e a província com o mesmo nome – não caia nas mãos dos jihadistas. Se o perigo passar até pode ser que os curdos voltem a deixar Kirkuk (eles já lá viveram em maioria, Saddam Hussein expulsou-os e arabizou a região). Eles têm tempo e muita, muita paciência.

No “outro Iraque”, com capital em Erbil, um farol para todos os curdos, que muitos vêem como embrião do futuro Estado, exporta-se petróleo sem autorização de Bagdad, tudo funciona (electricidade, água, recolha de lixo…) e até há subúrbios novos, imensos, à americana, e uma bolha imobiliária de tanto dinheiro que entrou desde a queda de Saddam.

Nos primeiros anos, a Turquia reagiu mal, acusando os curdos iraquianos de oferecerem abrigo aos combatentes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) e bombardeando, em diferentes momentos, a região iraquiana. Entretanto, Ancara decidiu que fazer dinheiro era mais lógico do que largar bombas. Mal por mal que o Estado turco ganhasse a sua parte – todos os dias, pelo menos enquanto os curdos continuarem a repetir que não querem um país (e dão passos para o terem, um dia).

É a economia
O Iraque tornou-se no segundo mais importante parceiro comercial da Turquia, logo a seguir à Alemanha. As exportações turcas chegaram em 2013 aos 8900 milhões de euros, a maioria fica no Curdistão iraquiano. Também há 123 mil turcos que ali vivem, são comerciantes, empresários, motoristas. É a economia, claro, ainda que o conflito armado entre Ancara e o PKK tenha feito desde 1984 45 mil mortos.

Dos 80 turcos feitos reféns pelo ISIS na sua entrada em Mossul, incluindo o cônsul turco na cidade e 30 agentes de segurança de unidades de elite, 31 são condutores de camiões. Na sexta-feira, 3000 viaturas de carga turcas estavam encurraladas na estrada que liga Zaho (é a cidade da Turquia mais próxima do Iraque) a Dohuk (no Curdistão iraquiano).

Os curdos iraquianos não se limitam a exportar petróleo à margem da vontade (e das leis e da incompetência do Parlamento) de Bagdad. Em Dezembro, o governo regional curdo pôs a funcionar um oleoduto que leva o petróleo da região até ao porto turco de Ceyhan. Em resposta, o Governo de Nouri al-Maliki deixou de pagar aos curdos a sua parte da distribuição dos lucros nacionais do petróleo exportados pelo Estado central: 17% do que são 95% de todo o orçamento iraquiano. Os curdos responderam exportando directamente ainda mais petróleo com a ajuda… da Turquia.

Novas dependências
Como aconteceu na Síria, agora que o ISIS ataca no Iraque, os curdos só têm a ganhar, exactamente por terem toda a paciência do mundo e nunca perderem tempo. O Exército iraquiano, formado e equipado pelos Estados Unidos, tem mais de 400 mil homens (aos quais se juntam mais de 500 mil polícias). Mas quase não resistiu aos avanços e uns poucos milhares de combatentes do ISIS. Pelo contrário, as velhas milícias curdas, os peshmerga, mais bem preparados e sempre motivados, foram ágeis a proteger Kirkuk e a oferecer-se para ajudar Maliki.

Encurralado, Maliki aceitou e abriu assim caminho a uma nova dependência em relação a Erbil que vai fortalecer a capacidade negocial dos curdos do Iraque quando o petróleo – e as exportações de crude e a divisão dos lucros – voltar a ser discutido.

A Turquia temeu os curdos do Iraque para depois com eles negociar. A Turquia tentou impor-se como potência regional e depois perdeu tudo com as revoltas árabes – foi ultrapassada pelos acontecimentos, gritou a Assad “chega” e o ditador sírio ignorou o grande vizinho e deixou o primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan, a falar sozinho. Erdogan é conhecido por nunca se calar, mas desde que o ISIS tomou Mossul e parte do Norte do Iraque ainda não disse uma palavra.

Com o avanço jihadista no Médio Oriente, deste ISIS que tem por objectivo a criação de um califado sunita que una o Iraque ao Líbano, incluindo a Síria, os turcos podem perder muito, na economia e na influência regional (já tinham perdido com a guerra síria), a longo prazo bastante mais. Os curdos, com toda a sua paciência e prontidão, só têm a ganhar.

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