Vida pública e vida privada

Não me espantaria se o affaire Gayet acabasse por trazer mais vantagens do que desvantagens à popularidade de Hollande.

Entre os grandes contributos que François Hollande tem dado ao mundo, este não será o menor deles: ajudar-nos a entender, graças ao affaire Gayet, o quão ingénua é a pretensão daqueles que acham que é possível separar a vida pública da vida privada como quem separa a água do azeite.

A Europa continental sempre torceu o nariz, com um certo ar de superioridade, à forma como nos países anglo-saxónicos a vida privada dos políticos era exposta nos jornais. E todos nós temos memória de inúmeros excessos, cujo pináculo terá sido a exibição da vida sexual de Bill Clinton até ao pormenor do charuto e da nódoa no vestido de Monica Lewinsky, no final dos anos 1990. Queremos isso? Não queremos. Aliás, a mesma revista Closer que agora revelou a nova aventura de Hollande foi processada em 2012 pela família real britânica por ter mostrado fotos de Kate Middleton durante as férias em topless. Queremos isso? Embora a duquesa de Cambridge não tenha nada de que se envergonhar, não queremos.

Mas tal não significa que o contrário disso seja propriamente estimável, ou seja, que uma espécie de pacto de silêncio entre as altas figuras do regime e os jornalistas em relação a certos temas privados e aventuras extraconjugais assegure uma democracia mais saudável. Por uma dupla razão. Em primeiro lugar, porque ao fazê-lo estamos a conferir um privilégio a certas figuras do poder quando o negamos a outras – as estrelas do cinema, da televisão, da música ou do desporto têm de aceitar uma vida de perseguição pelos paparazzi enquanto os políticos a rejeitam liminarmente (o que em França trouxe grandes benefícios a figuras como François Mitterrand). Em segundo lugar, porque é uma hipocrisia tremenda aceitar que um político ande a exibir a família em plena campanha eleitoral, a abrir as portas de sua casa às revistas sociais, a promover uma certa intimidade e empatia com o eleitorado, para depois se vir queixar de que a sua esfera privada foi invadida de forma ilegítima por uma publicação. 

Como o caso Strauss-Khan tão bem demonstrou, há uma enorme complexidade na relação público-privado, que muitas vezes não é devidamente analisada, por a reserva da privacidade ser alcandorada pelos espíritos bem-pensantes a valor intocável da modernidade. Mas basta verificar a facilidade com que todos nós falamos do caso francês em contraponto com as polémicas que se levantariam se o caso fosse português, para constatarmos a duplicidade de critérios em relação a esta matéria.
Mais fácil será admitir que, a partir do momento em que alguém desempenha cargos políticos tão importantes quanto a presidência de um país, os limites da sua esfera privada ficam dramaticamente diminuídos – e deve ter consciência disso. Embora François Hollande não seja casado com Valérie Trierweiler, ambos vivem no Palácio do Eliseu, o que significa que o erário público sustenta financeiramente a relação. E a ser verdade a descrição da revista Closer sobre um dos guarda-costas chegar no dia seguinte com croissants quentes para o casal, essa foi também uma mordomia paga pelos contribuintes. Nós podemos não gostar desta sociedade demasiado transparente em que nos estamos progressivamente a tornar, mas se há uma classe que não tem o direito de reclamar uma obscuridade só para si é, precisamente, a dos políticos. Até porque o velho puritanismo já era, e não me espantaria se o affaire Gayet acabasse por trazer mais vantagens do que desvantagens à popularidade de Hollande.
 
 

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