Valeriu Nicolae, a partir de um “gueto” de Bucareste

A emigração da mendicidade aumenta a hostilidade contra os ciganos romenos em toda a Europa. Valeriu Nicolae e os colegas do Policy Center for Roma and Minorities tentam quebrar o ciclo de pobreza extrema a partir do bairro de Ferentári. Hoje é Dia Internacional do Povo Cigano.

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“A Roménia é muito racista.” O activista diz que o país ainda não lidou com a sua história. Hoje é Dia Internacional do Povo Cigano. Silviu Panaite / Dela0.ro
A comunidade rom tem oficialmente 620 mil elementos na Roménia
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O activista acha que a Roménia ainda não lidou com a sua história Paulo Pimenta

Chega à hora marcada. Traz a mulher e o filho. “Senhor Valeriu! Senhor Valeriu”, alegram-se os miúdos ao ver entrar o seu carro no pátio da escola 136 de Ferentári, o bairro mais temido de Bucareste.

Não terá mais de 1,70 metros o homem magro, de cabeça rapada, que sai do utilitário, escuro. Tem um ar sério, cansado. Veste umas calças de fato de treino azuis, um blusão com capuz, a condizer. Os miúdos, em seu redor, também estão vestidos para correr e saltar. É hora da habitual partida de futebol de sábado.

Valeriu Nicolae já trouxe proeminentes figuras do basquete, do futebol e do voleibol romeno a este “gueto” de etnia cigana, sobrelotado, conhecido pelo tráfico e pelo consumo de drogas. Alguns jogaram neste pavilhão que agora acolhe rapazes, muitos deles demasiado pequenos para a idade.

Poucos fins-de-semana livres tem Valeriu desde que em 2008 fundou o Policy Center for Roma and Minorities, um think tank sediado em Bucareste, na Roménia. A organização tenta promover a integração da comunidade de Ferentári, dando particular atenção às crianças em risco de abandono escolar e de piores formas de trabalho infantil – mendicidade, tráfico de droga, prostituição.

Trabalhava em Bruxelas, Valeriu. Fazia lobby pela integração das comunidades de etnia cigana. Participava em todo o tipo de encontros. Enquanto isso, em “guetos” como este nada parecia mudar. As pessoas continuavam mal vestidas, mal alimentadas, a chafurdar no lixo, a reproduzir miséria. 

Os roma, como preferem que se lhes chame, foram dos primeiros a perder o emprego na transição do regime de Nicolae Ceausescu para a democracia. As crianças forçadas pelos pais a mendigar ou a roubar na década de 1990 transformaram-se em adultos que usam os filhos para mendigar ou roubar. A menos que o ciclo se quebre, os filhos dos filhos hão-de fazer o mesmo. E Valeriu não está a ver isso acontecer, apesar da entrada da Roménia na União Europeia, em 2007.

Compreende os miúdos que saltam em seu redor. “Senhor Valeriu! Senhor Valeriu!” Revê-se neles.

A mãe, cigana, casou-se com um não-cigano. Esperava que isso a arrancasse da miséria, só que o homem, diz o filho, “era um palerma alcoólico”. Dentro de casa, faltava tudo. E, por mais que a mãe se esforçasse, as crianças não eram encaradas como romenas, mas como ciganas, simplesmente.

“Cigano piolhoso!”, chamavam-lhe alguns colegas da escola primária. Ele nunca tivera piolhos. A mãe sempre fora obcecada pelas limpezas. Uma vez por semana, lá em casa, lavava a cabeça de cada um com uma mistura de água e gasolina. Duas vezes por semana, fazia o mesmo com o chão e com os móveis.

Pouco podia contar com o marido, a mãe de Valeriu. Para pôr comida na mesa, socorria-se de estratégias que irritavam a vizinhança. Criava galinhas numa estrutura que montara em frente ao prédio. Levantou uma barraca para fumar porco. Com uma panela grande, da gordura animal fazia sabão.

No início, Valeriu detestava ir à escola. Depois, percebeu que ir à escola era uma forma de arranjar comida. Aprendia tudo muito depressa. Tornou-se o melhor aluno da turma. Quando a sua fotografia apareceu no quadro de honra, alguém foi à sua porta defecar e escrever: “Cigano fedorento.”

A sua felicidade durou pouco quando foi eleito presidente de turma, uma espécie de delegado de turma, na 4.ª classe. Num intervalo, ouviu o professor comentar: “Os idiotas da minha turma votaram num cigano fedorento em vez de votarem na filha do professor universitário Xulescu."

Uma vez, já no fim do secundário, o seu gosto pelo basquetebol fê-lo perder a noção do tempo. Ao perceber o atraso, correu para a aula. Estava um calor dos diabos. Transpirara por todos os poros. Tinha a T-shirt num pingo. O professor explodiu: “Estás a feder!” Virou-se para a turma: “Sabem como cheira um cigano fedorento? Como este! Venham cá cheirá-lo!” Os colegas tiveram de lhe obedecer. Vieram todos cheirá-lo, um a um. Acha que aquele foi o momento mais humilhante de toda a sua existência.

O discurso do taxista que nos trouxera a Ferentári não o espanta. Os ciganos não são romenos, dissera o homem. São “sujos”, “preguiçosos”, “ladrões”, dissera ainda. Sucessivos inquéritos, lembra Valeriu, indicam que a esmagadora maioria dos romenos não gostaria de ter um cigano na família.

“A Roménia é muito racista”, diz o activista, sentando-se por um instante num banco corrido do pavilhão, sem tirar os olhos dos miúdos. “Toda a Europa é muito racista no que aos ciganos diz respeito.” Para o provar, às vezes, pede a quem se acha livre de preconceitos que feche os olhos e imagine a respectiva mãe. A mãe está muito feliz. A pessoa sorri ao ouvir isso. Ela tem uma novidade para contar. Conheceu alguém que julga especial e que a faz sentir-se especial. Ele, o namorado, é cigano. “A cara da pessoa altera-se ao ouvir a palavra 'cigano'. Percebe-se o nojo”, conta.

O activista acha que a Roménia ainda não lidou com a sua história. “Os romenos esqueceram-se de que durante séculos nos venderam como se fôssemos vacas”, enfatiza. Muitos ignoram o holocausto cigano. Por ordem do marechal Ion Antonescu, uns 25 mil foram deportados, uns 11 mil executados. Ainda agora, afiança, um político sobe nas sondagens se disser mal dos ciganos.

Nada em Valeriu remete para o estereótipo que eriça o taxista. É duro de ouvido. Não toca instrumento algum. Na hora de dançar, parece ter dois pés esquerdos. Não sabe ler o futuro nas palmas das mãos alheias. Nem imagina como pode um ser humano cativar um cavalo. Não se considera um “espírito livre”. É viciado em trabalho. Canaliza boa parte do rendimento da família para a sua causa, que acaba por também ser a causa da mulher, Hannah Slavik, que aqui vem com ele ao sábado e que, durante a semana, a título de voluntariado, aqui dá aulas de inglês a dois grupos de miúdos.

Estudou informática. Fê-lo, primeiro, na Roménia, depois, na Alemanha. “Foi engraçada a experiência”, recorda. Havia tanta coisa para descobrir. Nunca antes entrara num restaurante, por exemplo. Quando voltou a casa, a pobreza chocou-o. Já podia comparar. Não queria aquilo.

Estudar, estudar muito, parecia-lhe a única via de saída. Conquistou outra bolsa. Estudou e trabalhou no Reino Unido. Regressou à Roménia. Teve um percurso profissional de sucesso que o levou a chefe de equipa da IBM nos EUA. No Canadá, onde também viveu, conheceu Hannah.

Estava a ganhar bom dinheiro. Tanto que até lhe fazia confusão. Era muitas vezes chamado para falar em público, até porque ficava bem ter um cigano para amostra. Quis recomeçar. Estudou diplomacia em Malta. De repente, estava a fazer lobby em Bruxelas pela integração dos ciganos.

O ponto de viragem acontecera durante um seminário, nos Estados Unidos. Um chinês disse-lhe que as discussões filosóficas sobre “boa sociedade” só tinham sentido para quem tinha dinheiro, educação e estômago cheio. Seria possível construir “boa sociedade” numa “área de merda”?

Quando Valeriu anunciou que queria trabalhar em Ferentári, disseram-lhe que “estava louco”, que nada do que fizesse teria impacte na vida daquele bairro. Começou por fazer algo de uma simplicidade quase inocente: pediu umas camisolas a um amigo que trabalhava na UEFA e organizou uma equipa de futebol.

Fizera muito desporto na infância e juventude. Correra, nadara, jogara ténis, futebol, básquete. Não se sentia olhado com “um cigano fedorento”. Os colegas respeitavam-no. Forjou grandes amizades nesse contexto. Aprendeu a importância do trabalho árduo, da disciplina, da vontade de se superar.

O projecto “Clube de Educação Alternativa” está a funcionar na Escola 136 desde 2010. À volta de 120 miúdos entre os 6 e os 15 ou 16 anos fazem desporto, teatro, dança e outras actividades extracurriculares. Ainda agora daqui saiu um grupo de raparigas para uma aula de performance.

Lembra o “Escolhas”, um programa governamental português criado em 2001 com a missão de “promover a inclusão social de crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis” de todo o país. Com o projecto, Valeriu recebeu vários prémios. Por mais elogios que tenha recebido, por celebridades que aqui tenha trazido, não captou o interesse do Estado, muito menos o seu financiamento.

Demitiu-se da direcção no ano passado. “Mendigar é cansativo e degradante, como trabalho”, escreveu no seu blogue – http://valeriucnicolae.wordpress.com/. Muitas vezes, é “uma escolha triste, mas lógica para pessoas sem alternativa”. Mendigar é também o modo de sobrevivência de ONG como a sua.

As candidaturas a financiamento da EU converteram-se num negócio. “Os incentivos para fazer batota são muito maiores do que os incentivos para cumprir regras, que fazem pouco sentido”, denuncia. Para que tudo batesse certo, tinha de pôr dinheiro do seu bolso e de contar com mecenas e voluntários.

Do seu ponto de vista, de pouco está a servir o financiamento da União Europeia para a inclusão do povo roma. Continua a gastar-se muito dinheiro em viagens, hotéis, almoços, jantares. Continua a faltar dinheiro para trabalhar no terreno. E é no terreno, acredita, que se joga a mudança.

Em Ferentári, conhece famílias que fazem vida no estrangeiro a mendigar. As piores condições na Europa Ocidental afiguram-se-lhe melhores do que as que enfrentam aqui. E “este fluxo migratório, que torna a inclusão ainda mais difícil e mais cara, aumenta a hostilidade contra os roma”.

Por toda a Europa, os preconceitos ganham força. Não parece haver país no qual não subsista a ideia do “cigano fedorento” e desonesto. Noutro tempo, o consenso levou ao extermínio. Valériu admite que parece excessivo comparar o que se passa agora na União Europeia com o projecto de extermínio nazi, mas há muito que repete: “Enquanto o povo judeu foi pelo menos em parte reabilitado, o povo roma continua a ser um bode expiatório.” E quem sabe para onde caminha a Europa?

Não desistiu de fazer o que acha que tem de fazer. Aos sábados, depois do jogo, ele, a mulher e o filho, de 12 anos, convidam dois ou três miúdos para passar a tarde com eles lá em casa. São rapazes de 10 a 15 anos que vivem num centro de acolhimento. Servem-lhes almoço, põem a roupa deles a lavar, ajudam-nos a fazer as tarefas escolares, tentam incutir-lhes alguns hábitos, como lavar os dentes e trocar as meias. Tendo tempo, fazem qualquer coisa divertida, como ver um filme.

“Gosto de pensar que faço isto porque sou boa pessoa, mas a verdade é que se tornou uma rotina”, diz ele, já fora do bairro, já a fazer as compras da semana numa grande superfície comercial. Começou há muitos anos. “Sentia-me culpado porque, de repente, tinha mais dinheiro do que o que podia gastar.” Quis partilhá-lo. Agora, já nem sabe ser de outro modo. Se tem o fim-de-semana livre, sente-se estranho.

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