Uma homenagem aos que “nunca desistiram dos seus sonhos”

Jorge Sampaio recebeu o Prémio Nelson Mandela com um discurso contra a inevitabilidade e onde pediu que se assuma “a obrigação colectiva de resistir e de oferecer um escudo aos que não têm defesa”.

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Jorge Sampaio recebeu o Prémio Nelson Mandela na ONU, em Nova Iorque Daniel Rocha

“Temos de reconhecer que nós, os nossos governos e a comunidade internacional, falhámos, não agimos adequadamente para impedir desenvolvimentos trágicos e alarmantes, para proteger os que mais precisam”, afirmou Jorge Sampaio no discurso com que aceitou, nas Nações Unidas, o Prémio Nelson Mandela.

O ex-Presidente português foi, com a oftalmologista da Namíbia, Helena Ndume, o primeiro laureado de um prémio criado para consagrar o legado “de reconciliação e transformação social” do líder sul-africano. A cerimónia, esta sexta-feira na sede da ONU, em Nova Iorque, coincidiu com o Dia Internacional Nelson Mandela.

Enumerando “o descrédito em relação aos políticos e à democracia” na Europa, as “novas formas mais subtis de autoritarismo que emergem”, as “novas e mais violentas guerras de terror”, “os milhões que ainda vivem na pobreza”, “o bloqueio em conflitos como o israelo-palestiniano” ou “a enorme quantidade de refugiados, deslocados e migrantes que enfrentam todo o tipo de atrocidades”, Sampaio falou em “tempos de escuridão”, em que “grandes sucessos da humanidade parecem estar em risco”.

“Mas não tem de ser assim”, afirmou, citando o exemplo e as palavras de Mandela: “A grande glória de viver não é nunca falhar, é levantarmo-nos de cada vez que falhamos.” Manter vivo este legado é assumir “a obrigação colectiva de resistir e de oferecer um escudo aos que não têm defesa”. E é às Nações Unidas, defende, que cabe “liderar este caminho”.

Mais do que dedicar o prémio a outros, Sampaio recebeu-o em nome de “milhões de pessoas comuns que por todo o mundo nunca desistiram das suas esperanças e sonhos, nunca perguntaram o que podiam receber de volta, nunca se renderam, mas, pelo contrário, se ergueram contra todas as expectativas”. Estas pessoas são “as verdadeiras nomeadas para este prémio e as companheiras de Nelson Mandela no longo caminho pela justiça e liberdade”.

Entre os anónimos que trabalham contra tudo e contra todos, o homem que desde que deixou Belém, em 2006, foi Enviado Especial da ONU na Luta contra a Tuberculose e Representante da mesma organização na Aliança das Civilizações, lembrou “os inúmeros voluntários na área de saúde” que conheceu nas suas viagens, “homens e mulheres, muitas vezes sem estudos, que garantem cuidados de saúde primários em bairros de lata, zonas rurais remotas, campos de refugiados, áreas de conflito e de pós-conflito, onde vivem as populações mais marginalizadas”.

Sampaio recordou ainda os movimentos de base, organizações da sociedade civil e os activistas “que são cada vez mais actores influentes e capaz de produzir mudanças”. Foi na Aliança das Civilizações, fórum criado por iniciativa da França e da Turquia para aproximar comunidades através do diálogo e de acções comuns, e promover o encontro entre a diversidade, que o ex-político teve “o privilégio de conhecer muitas pessoas admiráveis empenhadas na construção de sociedades inclusivas, tolerantes e plurais”. Pessoas que, como Mandela, sabem que “ninguém nasce a odiar outra pessoa por causa da cor da sua pele, do seu passado ou da sua religião”.

Orgulhoso por “metade do primeiro Prémio Nelson Mandela da ONU falar português”, o ex-Presidente quis lembrar “todos os membros da grande família que fala português e homenagear a sua unidade e diversidade”.

Recordando as décadas da ditadura em Portugal, quando se vivia “com medo, debaixo de um controlo repressivo sufocante e um regime político repressivo”, também quis dedicar este prémio “aos portugueses, que são corajosos, generosos e resistentes, fortes e abertos”. “Sempre repeti que o melhor que temos no nosso país é o nosso povo, homens e mulheres de esperança, perdão e resistência”, afirmou.

Um pouco de magia
À frente da Plataforma de Emergência para Universitários Sírios, uma iniciativa que lançou em 2013 para dar bolsas a sírios que foram obrigados a interromper os seus estudos superiores por causa do conflito, Sampaio tem tido oportunidade para confirmar a generosidade dos portugueses. Actualmente, há 63 sírios espalhados por universidades em todo o país, da Covilhã a Faro, e a disponibilidade das comunidades para acolher estes jovens é um dos factores que o ex-Presidente mais destaca da iniciativa.

Por tudo isto, e apesar o “nosso século XXI” sentir a falta da visão de Mandela, “do seu optimismo sobre a humanidade”, este prémio é uma oportunidade para repetir que há sempre pessoas “capazes de compaixão, esperança, resistência, orgulho e sacrifício”. E é pensando em Mandela que Sampaio defende que para injectar esperança no futuro basta “polvilhar a vida pública e as relações internacionais com um pouco de magia, uma magia que vem da nossa humanidade comum”.

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