Tréguas declaradas em Kiev perante iminente escalada da violência

Lançamento de operação “antiterrorista” e possibilidade de intervenção militar alimentam receios de mais confrontos. Ianukovich quer regressar à via do diálogo mas terá de fazer concessões.

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Manifestantes incendiaram tendas e pneus na Praça da Independência Sergei Supinsky/AFP

Perante a resiliência dos manifestantes, que continuam na Praça da Independência depois de uma noite de confrontos com a polícia, o poder avançou para um novo nível de ameaça. O Presidente Viktor Ianukovich lançou uma operação “anti-terrorista”, abrindo caminho para um aumento da repressão das forças de segurança e até para uma possível intervenção militar. Ao mesmo tempo tentou reabrir a via do diálogo, que já pode vir tarde de mais.

O dia foi de relativa calma, em que foram as diplomacias estrangeiras a trocar acusações de ingerência e a acenar com sanções. Às primeiras horas da manhã foi conhecida a actualização do número de vítimas mortais: 26 pessoas, dos quais dez polícias. Kiev é uma cidade bloqueada, em que parece difícil conceber uma vida normal, neste momento. O metropolitano continua encerrado, o acesso rodoviário e ferroviário está restringido e são muitas as lojas e os serviços que se encontram fechados.

Durante a noite, a Berkut – a polícia antimotim – tentou remover os manifestantes da Praça da Independência, local onde permaneciam há quase três meses. Apesar de terem ganho algum terreno, através da utilização de canhões de água, a polícia não conseguiu desmobilizar e os manifestantes conseguiram permanecer. Para o conseguir incendiaram as muitas tendas e pneus de que dispõem. Na Maidan, como é conhecida, estão agora vários focos de incêndio, lembrando um cenário pós-apocalíptico.

A chegada a uma resolução negociada e pacífica parece estar, contudo, cada vez mais longe. Ianukovich não hesita em apelidar os manifestantes de “terroristas” e responsabiliza a oposição e acusa os seus líderes de pretenderem tomar "o poder através de fogo posto e de homicídios".

Ao mesmo tempo que adopta uma retórica de ataque, o Presidente dá mostras de querer regressar à via do diálogo. Ao início da noite de ontem, Ianukovich afirmou que “as partes declararam tréguas e a retoma das conversações”. Não houve mais esclarecimentos, até ao fecho desta edição, a que se referia ao certo, mas a via do diálogo voltará a revelar-se infrutífera se as exigências primordiais dos manifestantes não forem atendidas: a revisão da constituição e a marcação de eleições antecipadas. É também incerto se a oposição está disposta a alinhar novamente no diálogo, depois do fracasso das negociações anteriores ter levado aos confrontos e às mortes da última terça-feira.

Movimentações militares

Na Praça da Independência permaneceram durante todo o dia milhares de manifestantes. A razão para a resistência dos activistas parece estar mais do lado das forças de segurança. Oleg Tsarev, membro do Partido das Regiões, no poder, explicou, em declarações a um canal estatal russo: “A Maidan teria sido limpa se tivesse havido uma ordem para isso.”

A “ordem” veio ontem, quando os Serviços de Segurança Ucranianos anunciaram uma operação “antiterrorista” em todo o território destinada “aos grupos extremistas e radicais que ameaçam, através das suas acções, a vida de milhões de ucranianos”. A operação obedece às leis antiterrorismo, que autorizam o uso de armas e “meios especiais” para deter suspeitos, exigir identificações, revistar veículos e restringir o movimento de pessoas e veículos, conforme esclareceu o Ministério da Defesa.

O recurso à medida veio deixar aberta a possibilidade de uma intervenção militar, algo que não aconteceu desde o início dos protestos e que Ianukovich sempre recusou publicamente. A notícia de que o Presidente demitiu o chefe das forças armadas veio alimentar ainda mais o receio de que os militares possam intervir. A demissão do general Volodimir Zamana não foi justificada mas, no início do mês, o responsável tinha afirmado à AFP que “ninguém tem o direito de usar as forças armadas para limitar os direitos dos cidadãos”.

Uma intervenção do exército na Ucrânia é a notícia que ninguém quer ouvir. O Presidente norte-americano, Barack Obama, afirmou, a partir do México, que é necessário “assegurar que o exército ucraniano não entra naquilo que são questões que podem ser resolvidas por civis”. Também a NATO apelou aos “líderes responsáveis para que evitem o uso de força militar contra o povo ucraniano”, através do comandante supremo da aliança na Europa, Philip Breedlove.

Do lado da oposição, também se vão reunindo as tropas. Durante o dia surgiram várias notícias de roubos de armamento e munições de instalações militares, que despertam receios de que as guerrilhas urbanas extremistas se reforcem e iniciem nova escalada da violência. Depois de terem perdido a Casa dos Sindicatos, incendiada durante a noite de terça-feira, os manifestantes ocuparam edifícios no centro da capital, entre eles a Câmara Municipal, que tinha sido desocupada no domingo. Na Praça da Independência foi ainda invadido o posto central dos correios que, segundo o Kyiv Post, vai servir de quartel-general do “Sector Direito”, uma organização nacionalista considerada violenta. A sede do Conselho da Televisão e Rádio Nacional, a um quarteirão da Praça, também foi invadida, avançam algumas agências locais.

País dividido

Enquanto em Kiev se contavam os mortos e se trocavam acusações, o resto do país apresenta sinais de uma clivagem cada vez mais profunda. Nas regiões mais ocidentais, os manifestantes conseguiram tomar edifícios públicos em cidades como Lviv, Ivano-Frankivsk ou Rivne.

No leste da Ucrânia, registam-se confrontos e os responsáveis políticos alinhados com Ianukovich prometem mão pesado sobre os manifestantes. O governador da província de Kharkov, Mikhail Dobkin, criticou os protestos de Kiev e avisou que acções semelhantes na região “terão uma resistência dura”.

Num ambiente cada vez maior de crispação parece demasiado optimista acreditar numa resolução pacífica da crise ucraniana. Se à crescente divisão entre o leste e o ocidente do país se somar uma intervenção militar a equação tem um resultado claro e inquietante: a guerra civil, expressão cada vez mais utilizada de ambos os lados. 

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