Militares demonstram apoio a Ianukovich mas não é dos quartéis que pode vir a violência

Forças armadas apelam à tomada de “medidas de urgência” pelo Presidente. Oposição encontra-se com Kerry em Munique.

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O Exército considera inaceitáveis " as tentativas de impedir o poder de cumprir as suas funções" Angelos Tzortzinis/AFP
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Dmitro Bulatov diz que foi sequestrado e torturado Reuters
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Manifestantes armados de bastões Vasily Fedosenko/REUTERS

Afastados da crise política do país até ao momento, as forças armadas ucranianas tomaram ontem, pela primeira vez, uma posição através de um apelo directo ao Presidente, Viktor Ianukovich, para que tome “medidas de urgência” para alcançar uma solução. Uma intervenção militar no país é um cenário que já foi condenado pela comunidade internacional, mas que não pode ser totalmente afastado, numa altura em que o diálogo entre poder e oposição entrou num impasse.

A possibilidade de instauração do estado de emergência na Ucrânia foi levantada pela primeira vez no início da semana. O edifício do ministério da Justiça tinha acabado de ser invadido por um grupo de manifestantes e a ministra Olena Lukash a acenar com essa perspectiva. A simples menção – posteriormente posta fora de causa pelo Executivo – fez soar os alarmes dentro e fora da Ucrânia e levou mesmo a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, a antecipar a sua viagem para Kiev.

No comunicado de ontem, que surgiu depois de uma reunião entre o ministro da Defesa e a cúpula das forças armadas, não se menciona quais são as “medidas de urgência” que Ianukovich deve tomar, mas a ameaça da declaração de um estado de emergência foi lida nas entrelinhas. Os militares consideraram “inaceitável a tomada de assalto de edifícios públicos” e temem que a escalada da contestação “ameace a integridade territorial” do país.

O estado de emergência foi sempre afastado oficialmente pelos responsáveis ucranianos e seria um cenário que poderia isolar o próprio país e os seus eleitos em termos internacionais. Em Dezembro, o secretário da Defesa norte-americano, Chuck Hagel, obteve a garantia do ministro da Defesa ucraniano, Pavlo Lebedev, de que o exército não seria utilizado para conter os protestos, segundo a Bloomberg.

Aquilo que a declaração dos militares manifesta é a fidelidade e o apoio a Ianukovich, segundo o director do Instituto de Estratégias Mundiais de Kiev, Vadim Karassev. Contudo, “não significa que os manifestantes (…) venham a ser dispersados ou que o estado de emergência seja decretado”, afirma o especialista à AFP.

A imposição do estado de emergência daria, por exemplo, “a possibilidade de uso de meios extremos para desocupar os edifícios governamentais e dispersar manifestantes”, nota ao PÚBLICO a docente da Universidade de Coimbra, Raquel Freire. “No contexto actual e dadas as posições que as partes têm assumido, seria apenas uma sensação de regresso à normalidade” da repressão violenta, considera a investigadora.

O apoio dos militares pode não ter mais que um valor simbólico, uma vez que, as forças armadas “são relativamente mal treinadas e o seu equipamento é inadequado”, observa Susan Stewart, do Instituto Alemão para Questões Internacionais e de Segurança de Berlim, em declarações à Bloomberg. A fraqueza militar das forças ucranianas é resultado de duas décadas de baixo financiamento. Com um invejável contingente de 800 mil homens, em 1991, herdado da era soviética, hoje a Ucrânia conta com apenas cerca de 182 mil militares.

No entanto, não significa que não venha a existir uma nova escalada da repressão sobre as manifestações. Durante a semana, o Zerkalo Nedeli, um semanário de referência, noticiou um plano secreto do Governo para aumentar a força das Berkut e dos Grifon, as forças de elite anti-motim. A intenção seria passar dos cinco mil agentes actuais para 30 mil, algo que foi desmentido pelo ministro do Interior. Recorrer à violência “não é o cenário mais provável” para Ianukovich, afirma Susan Stewart, “mas não pode ser descartado se ele estiver desesperado e encurralado”.

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, afirmou ontem, em Berlim, que o Presidente ucraniano ainda não fez as concessões necessárias para que uma solução seja alcançada. Kerry falava na véspera de um encontro em Munique com dois dos líderes da oposição a Ianukovich e também com a cantora e activista Ruslana.

O encontro de hoje já foi alvo de críticas por Moscovo, com o vice-primeiro-ministro russo, Dmitri Rogozin, a apelidá-lo de “circo”. “Porque não convidaram também o nazi [Oleg] Tiagnibok” questionou o responsável referindo-se ao líder do partido de extrema-direita Svoboda, e sugerindo ainda a Kerry que convide o conhecido travesti ucraniano Verka-Serduchka para o encontro.

O insucesso da via negocial está a deixar alguns grupos de manifestantes intranquilos e começam a ser evidentes as primeiras dissensões entre a oposição. Ontem, o líder do “Sector Direito” – um grupo paramilitar de extrema-direita – exigiu a libertação imediata dos manifestantes detidos. Caso contrário “os passos apropriados serão tomados para libertar estas pessoas e não serão utilizados apenas métodos constitucionais”, avisou Dmitro Iarosh, citado pela Reuters. O líder do grupo manifestou igualmente o desejo de participar directamente nas negociações.

Crucificado

Um dos activistas mais célebres das ruas de Kiev que estava desaparecido há uma semana surgiu ontem na televisão com o rosto coberto de hematomas e feridas nas mãos, dizendo ter sido sequestrado e torturado por homens com sotaque russo. “Eles crucificaram-me, pregaram-me as mãos. Cortaram-me na orelha e na cara. Não há um pedaço do meu corpo que esteja bem, mas graças a Deus estou vivo”, disse Dmitro Bulatov, antes de ser levado para um hospital de Kiev.

Bulatov, de 35 anos, é o líder do AutoMaidan, um grupo que se notabilizou pelas acções com automóveis que promovem desde o início dos protestos. Uma das iniciativas mais recorrentes são os longos cortejos de viaturas até às residências de políticos pró-Governo, incluindo o próprio Ianukovich.

Data de 22 de Janeiro a última actualização de Bulatov no Facebook: “Recebo cada vez mais ameaças. As trevas abatem-se, mas nós venceremos.” A mensagem foi premonitória. O rapto de Bulatov junta-se a outros casos que têm sido noticiados pela imprensa local e condenados a nível internacional.

Iuri Verbitski, outro activista da oposição, desapareceu um dia antes de Bulatov e foi encontrado morto dias depois, com as costelas partidas e com os braços amarrados. Segundo a rádio Free Europe, juntamente com Verbitski desapareceu um jornalista da oposição, Igor Lutsenko, que reapareceu no dia seguinte com um olho negro e sem um dente.

Referindo-se ao aparecimento de Bulatov, Catherine Ashton afirmou ontem que “actos deste tipo são inaceitáveis e devem ser impedidos imediatamente”. A Amnistia Internacional pediu a abertura de um inquérito ao caso de Bulatov e a condenação dos responsáveis. As Nações Unidas solicitaram, por seu turno, o lançamento de uma investigação sobre os desaparecimentos e os episódios de tortura que chegam a público. Os ataques a “dezenas” de jornalistas e pessoal médico foram condenados pela Human Rights Watch.

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