Somália “em recuperação” prepara-se para o regresso dos seus refugiados

Há 20 anos que os somalis estão habituados a abandonar o seu país rumo ao Quénia. Agora podem regressar, mas mantém-se a incerteza quanto à estabilidade deste Estado falhado

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NO campo de Dadaab vivem mais de 500 mil refuguiados Roberto SCHMIDT/AFP

Há duas décadas que milhares de somalis fogem à guerra e à fome do seu país para o vizinho Quénia. Agora parece ter chegado a hora de voltarem a casa. Os mais de 500 mil refugiados somalis no Quénia podem regressar ao seu país de origem, se assim o desejarem, no âmbito de um acordo assinado no domingo entre os governos dos dois países e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). O acordo é olhado com satisfação pela comunidade internacional, mas são muitas as dúvidas que rondam a viabilidade de um processo de repatriação sem precedentes.

“Somos hoje as pessoas mais felizes por participarmos neste exercício que prevê que o maior campo de refugiados do mundo comece o processo de repatriação voluntária e ordeira de cidadãos para os seus países.” Era desta forma exultante que o vice-primeiro-ministro queniano, William Ruto, reagia ao desfecho do acordo. Mais contida, a homóloga da Somália admitia que “o terrorismo ainda é a maior ameaça da região”. “A República Federal da Somália está empenhada em criar condições que permitam a repatriação voluntária, segura e digna, dos refugiados somalis”, garantiu Fownia Yusuf Adam à BBC.

A ONU enfatiza que o regresso dos refugiados é voluntário. “É muito importante sublinhar que ninguém está a forçar os somalis a abandonar o Quénia”, fez notar o representante do ACNUR no Quénia, Raouf Mazou. “O Governo e o povo do Quénia foram incansáveis ao dar protecção e assistência aos refugiados somalis durante duas décadas. O acordo assinado no domingo não significa que o Quénia não esteja disposto a fazê-lo mais”, insistiu Mazou. Este pode ser o discurso oficial, mas a verdade é que a população de refugiados somalis é vista cada vez mais com desconfiança.

Relatos de abusos por parte da polícia queniana para com os cidadãos somalis nos últimos anos têm sido comuns. Ainda este ano, um relatório da organização não governamental (ONG) Human Rights Watch dava conta da repressão das forças policiais sobre a comunidade somali no bairro de Eastleigh, nos subúrbios de Nairobi, apelidado de “Pequena Mogadíscio” por causa do grande número de somalis. A ONG denuncia práticas de “violações, espancamentos, roubos, extorsões e detenções arbitrárias em condições degradantes e desumanas”, que não poupavam mulheres ou crianças.

A violência sobre os refugiados não se fica apenas pelos subúrbios da capital queniana. Em 2010 foi o próprio ACNUR que denunciou a expulsão forçada de mais de oito mil somalis pelas autoridades quenianas, apelando mesmo à Convenção de Genebra, que proíbe a negação em acolher pessoas que fujam de um país inseguro. Em resposta, o Governo alegava que os seus campos de refugiados já teriam ultrapassado a capacidade para receber pessoas. A argumentação de Nairobi tem a força das evidências. Dadaab é uma autêntica “cidade temporária”, erigida no meio do deserto há mais de vinte anos. Nela habitam – ou melhor, sobrevivem – mais de 500 mil pessoas, na sua esmagadora maioria refugiados somalis, que atravessaram a fronteira a menos de cem quilómetros. Com a mesma população de Lisboa, Dadaab é o maior campo de refugiados do mundo.

Vinte anos de fome e violência

O êxodo maciço dos somalis começou em 1991, quando caiu o ditador Siad Barre, cujo regime era alimentado pelo jogo diplomático da Guerra Fria, com fundos vindos ora de Washington ora de Moscovo. O vazio de poder originou uma luta fratricida entre numerosos clãs rivais, numa sopa de letras de siglas manchadas com sangue.

A piorar o quadro estão as inclementes vagas de secas que deixam famílias na fome extrema. Em 2011, o Corno de África passou pela pior seca dos últimos 60 anos. A fome matou 80 mil pessoas na Somália só num ano. Para fugir à morte, cem mil atravessaram a fronteira e engrossaram as longas filas à porta de Dadaab.

A instabilidade no poder permitiu o desenvolvimento de um autêntica “indústria” da pirataria. O golfo de Áden, importantíssimo ponto de passagem para o comércio marítimo, transformou-se num dos pontos mais perigosos dos oceanos, com os assaltos a embarcações a tornarem-se frequentes. Em terra, a Somália tornou-se um campo fértil para o extremismo islâmico, com o grupo Al-Shabab, ligado à Al-Qaeda, à cabeça. Estima-se que integre entre sete mil e nove mil milicianos somalis. Assim se constrói um Estado falhado.

No Quénia tornou-se comum associar os somalis com a Al-Shabab, o que torna os refugiados ainda menos desejados no país. O ataque bombista ao centro comercial Westgate, em Nairobi, no final de Setembro, pode ter sido a gota de água para os quenianos, apesar da insistência da ONU de que a repatriação dos refugiados é voluntária.

Em 2012 terminou o mandato do Governo Federal de Transição na Somália, que deu lugar ao primeiro Governo federal desde o início dos anos 1990. O vislumbre de estabilidade no país pode ter acelerado o processo de transição, mas, como nota Geno Teofilo, do escritório de Nairobi da Oxfam, ainda “não é certo que [a Somália] tenha condições”. Ao PÚBLICO, refere que “há partes que não estão seguras”, mas que a Somália “está a recuperar”. O desejo é o de que “as pessoas não regressem para terem fome”.
 

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